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Teatro: Marulho: o Caminho do Rio...

Em seu novo espetáculo, o irrequieto  Redimunho de Investigação Teatral bebe na fonte do Rio São Francisco para extrair histórias dos ribeirinhos. Durante quase um mês a trupe percorreu o De Janeiro, rio que desemboca no Velho Chico e foi citado no clássico Grande Sertão: Veredas. Valeu a caminhada. É uma montagem de fôlego, não pela duração de duas horas e meia, a que o público acompanha com interesse e envolvimento, mas por alinhavar habilmente lendas, mitos e tramas e convertê-los em partitura teatral. Um rico material que se deixou pincelar ainda pelo universo de Jorge Amado, Gabriel Garcia Marquez e Guimarães Rosa. A companhia apropriou-se do lirismo poético da prosa do escritor baiano. O romancista colombiano forneceu ingredientes de seu realismo mágico, o imaginário da fictícia cidade de Macondo e a chuva de passarinhos mortos do conto Um Dia Depois do Sábado. Do autor mineiro, capturou-se o ambiente e a gente rude do sertão, que já serviu de inspiração para outros dois trabalhos do grupo – A Casa (2006), centrado num homem que rememorava a sua infância e adolescência, e Vesperais nas Janelas (2008), passado num vilarejo perdido no tempo. Nesta montagem, que inaugura sua nova e descolada sede, o Redimunho volta a celebrar a importância do passado, da memória e das narrativas. O ator, diretor e dramaturgo Rudifran Pompeu convida o espectador a transitar pelas dependências, fazendo com que interaja no multifacetado espaço onde o texto é desembrulhado. O enredo, emoldurado por trilha musical original, envolvente e festiva, retoma o hálito popular do folclore interiorano e a mitologia que cerca o rio e seus personagens. Nada escapou ao olhar esperto e curioso da trupe. Por exemplo: um túmulo que descobriram na estrada, onde foi enterrado um boiadeiro da região, serviu de argamassa para a construção de uma das mais belas cenas da montagem. Da mesma forma que retalhos de histórias colhidas e ouvidas ganharam sentido teatral, com começo, meio e fim.    

O eficiente entrelaçamento dessas tramas fantasiosas, pescadores, vaqueiros e ciganos forjaram a boa dramaturgia que escora o trabalho. Trata-se de um relato de densidade poética, marca registrada no repertório do Redimunho. Toda a montagem transpira certa delicadeza, um clima mágico e fabular, um apelo à imaginação. Há uma cena em que um casal de primos, num aquário que simboliza o fundo do mar, conversa sobre um pescador morto de sede em alto mar e sobre um boi entristecido por ter sido, finalmente, apanhado. A poesia está impregnada nas imagens concebidas, sons e ruídos na arquitetura dos ambientes – gaiolas de pássaros, uma casinha/capela, o chão de areia, fios de musgos que descem dos tetos, a iluminação esmaecida, a boiada humana que passa. Duas meninas (Aline Sant´Anna e Keyth Pracanico) brincam e uma delas, que perdeu o pai afogado, garante que ele foi sugado para uma cidade submersa e mandou recado para a família utilizando-se de uma garrafa deslizando no leito das águas. Um cego (Carlos Mendes) explica a um devoto (Rafael Ferro), que afirma ter visto Nossa Senhora, que a imagem vista não é a da mãe de Jesus. Segundo este colecionador de almas, seria a do espírito de uma mulher má que ainda perambula pela região. Alegoria simples da permanente luta entre o bem e o mal dentro de cada um. A peça busca captar e expressar o que existe de comum nessas histórias, nessas singelas passagens, nesses estados de alma. Personagens evocados rapidamente numa cena reaparecem depois em outros contextos. Alfinete (Jandilson Vieira), um sujeito que entedia tanto de rio e mar a ponto de conversar com tubarão, mistura-se a uma procissão a caminho do cemitério. Subitamente o cortejo é interrompido por um vaqueiro que faz questão de fazer valer o combinado com o morto, que queria ser enterrado na estrada para poder ouvir a boiada passar. Nesta pungente sequência, o tempo é subvertido e se regressa ao passado. Nas entrelinhas, a discussão da ética, sem cair num discurso intelectual. Uma adolescente conta à amiga que foi com a mãe ao médico para examinar uma nódoa suspeita no peito. Ela acredita que a mancha é o sinal da sua paixão por um pescador. Num momento seguinte é a própria alma da mãe (Denise Ayres) que faz a travessia do rio para o outro lado, oportuna recriação da mitológica barca de Caronte. Em outra cena, o criador de passarinhos Gabo (apelido de Garcia Marquez na vida real) não se conforma com a perda das aves e culpa a molecada vizinha. O sistemático delegado João (prenome de Guimarães Rosa) encontra no fenômeno do tempo suspenso a explicação para a queda dos pássaros do céu. Sutil diálogo que homenageia dois fundamentais escritores.

Ao mesmo tempo em que teatraliza esse ir e vir do rio, metáfora do movimento da vida, a peça expõe teatralmente os conflitos internos que o grupo vivenciou durante o processo de construção do espetáculo. Mais do que incorporá-la à dramaturgia, a crise adquiriu a feição de um desabafo contra um estado de coisas, sobre o valor e a função do teatro nos dias de hoje. Ao longo da encenação, um carteiro (Izabela Pimentel) entrega correspondências misteriosas aos integrantes da trupe. O conteúdo das cartas detona os questionamentos.  Talvez o grande equívoco da montagem tenha sido justamente o de inserir e alavancar uma discussão árida num trabalho com outro sotaque e feição. São assuntos que, no caso, correm em leitos diferentes. É uma peça dentro de outra, num difícil e desequilibrado diálogo entre planos real e ficcional – no prólogo, dentro de um bar, ambas as dimensões se condensam. A metalinguagem resulta em um ruído que, antes de somar, subtrai. Um artista (Rudifran Pompeu) carrega uma cabeça do Pateta, personagem que representou numa festa infantil, e outro encarna um travesti (Carlos Mendes). Ambos estão amargurados com os novos tempos. Eles atuam à margem, como sub-trama, e são acessados pela figura deste carteiro, espécie de corifeu das tragédias e das comédias do teatro grego. O tema da desvalorização da arte no mundo atual, da obra de arte que não interessa mais a ninguém, poderia render outro espetáculo mais focado, menos superficial e ligeiro. A cena em que a cabeça de um ator é servida numa bandeja ilustra a esquizofrenia. Afinado com a proposta, o elenco acumula papéis e explicita a pulsação de personagens que combinam o banal e o maravilhoso. Como alguns atores ainda tateiam em busca da afirmação técnica, emerge a força do conjunto. Às vezes, a dramaturgia barroca e poética de Rudifran Pompeu peca pelo excesso, pela índole palavrosa e ausência de síntese. No entanto, tem o mérito de evitar a auto-compaixão, o estereótipo fácil, o retrato caricatural. Ao contrário, funde e confunde com talento as pulsões lírica e narrativa. Ao investigar um Brasil esquecido, o Redimunho produz oportuna reflexão em torno deuma cultura e de um modo de vida que teima em resistir num tempo predisposto a estimular e cultuar cada vez mais a indistinção.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto: Kátia Kuwabara)

 

Avaliação: Bom

 

Marulho: o Caminho do Rio...                                                                                                                   

Autor e Diretor: Rudifran Pompeu                                                                                                          

Elenco: Alline Sant´Ana, Izabela Pimentel, Carlos Mendes e outros                                            

Estreou: 15/01/2011                                                                                                                                

Espaço Redimunho (Rua Álvaro de Carvalho, 75, Centro. Fone: 3101-9645). Sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 30. Em cartaz por tempo indeterminado.

 

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