EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: A Merda

Completamente nua, montada em um palanque alto, com voz amplificada por um microfone, ela canta baixinho, quase sussurrando, e cumprimenta alguns espectadores que adentram a sala. Nesse palco vazio, apenas iluminado por holofotes sobre a sua figura, ela reina soberana. Sua nudez como iremos observar, não comporta remorso qualquer ou provocação barata. Repentinamente, a personagem começa a despejar palavras. O movimento contínuo de pensamentos, observações, revelações e desabafos parece que não terá fim tão cedo. Com certa dose de humor cáustico, o texto do autor italiano Cristian Ceresoli é dirigido a públicos afeitos a conteúdos desafiadores. E o solo da atriz Cristiane Tricerri, com seu corpo desnudo vulnerável, é poderoso, impactante e incômodo.

Embora escrita por um homem, a essência da peça é uma inquietante experiência feminina. A dor emocional que essa criatura exala, sem nenhum pudor ou autocensura, é tangível. Não por acaso, montagens dessa obra têm conquistado casas lotadas em algumas cidades pelo mundo. Mas é bom ressaltar de que não se trata de uma trama digerível com facilidade. Em flerte com o universo peculiar de Beckett, no que diz respeito à visão crua da existência e a busca por um sentido nela, o monólogo expõe lembranças de uma mulher atônita, atarantada em conflitos psíquicos.  

Três planos narrativos emaranham-se num único fluxo. Como afirma ser de estatura baixa, ela acredita ter coxas exageradas, o que a faz regularmente freqüentar um centro de tratamento para diminuí-las. Seu pai morto, que cometeu suicídio quando ela tinha treze anos, tornou-se um fantasma em seu cotidiano e pivô, insinua, de um profundo trauma que carrega até os dias atuais. Por fim, está obcecada em fazer sucesso na televisão como celebridade. Mesmo que tenha, simbolicamente, de comer fezes para cavalgar a notoriedade. Em suas histórias, há sugestão de incesto, o encontro sexual no parque com um menino deficiente, agressões na escola, estratégias pérfidas usadas em testes de audição. Sutis referências à política italiana, dominada por traços fascistas, entram no balaio também. Ela é uma mulher, percebe-se, que chafurda num mundo onde a fama construída e o consumismo corrompem a auto-estima.

Não é o corpo despido que gera apreensão, ainda mais porque a nudez carnal corresponde em graus semelhantes ao ato de se desvestir emocionalmente assumido por ela, mas a angústia e a eloqüência com que tudo é verbalizado, muitas vezes beirando à histeria. Diretora e intérprete, Cristiane Tricerri incorpora com desembaraço e franqueza essa figura indefesa, assolada por baques e choques do passado e do presente. É uma performance quase visceral, nervosa, pulsante, absolutamente teatral. Em alguns momentos, a personagem grita de raiva e indignação, até mesmo por penitência, para voltar no instante seguinte ao murmúrio ou ao silêncio tenso – sem esforço sobressalente, ela arrasta o público para o seu consternado discurso. Trata-se de um trabalho estudado de voz e pequenas inflexões corporais, uma partitura que chega a lembrar a de um animal acuado. Que ganha envergadura diante do fato de que ela está sozinha em cena, alijada de artifícios cenográficos, de iluminação e sonoros. 

Possivelmente o texto radical de Ceresoli investiga a construção da identidade e a forma como definimos as relações com a família, a sociedade e o país em que vivemos. E os efeitos disso na nossa história pessoal. Ou como fantasiamos nossa emancipação e abraçamos uma ilusão de poder. Por vias sinuosas, a encenação captura e expressa questões pungentes da vida, num exercício de olhar para fora e enxergar o que carregamos dentro de nós.    

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Gal Oppido)

 

Avaliação: Bom

 

A Merda

Texto: Cristian Ceresoli

Direção e Interpretação: Christiane Tricerri

Estreou: 09/07/2015

Espaço Parlapatões (Praça Roosevelt, 158, Consolação. Fone: 3258-4449).

Sexta, 21h; sábado, 22h; domingo, 20h. Ingresso: R$ 40. Até 19 de junho.

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