EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Contrações

Uma gerente de recursos humanos de multinacional está acomodada em sua sala e recebe Emma, convocada por ela para uma reunião. Após troca de cumprimentos amáveis e um ou outro comentário espirituoso, a nova integrante do departamento de vendas é instada a ler em voz alta uma cláusula de seu contrato de trabalho. O referido item do documento evidencia que um empregado não pode manter um relacionamento sexual ou romântico com outro funcionário sem comunicar a empresa, sob pena de demissão, mudança de sede e até de cidade.

Os primeiros minutos do texto do dramaturgo inglês Mike Bartlett, que recebeu montagem incisiva estrelada por Débora Falabella e Yara de Novaes, ambas do inquieto Grupo 3 de Teatro, já sinalizam uma espécie de enredo de terror. Isso porque os freqüentes encontros entre as duas adquirem aos poucos um clima de pesadelo kafkiano. As tais entrevistas, de tom aparentemente neutro no início, transformam-se em interrogatórios, com a subalterna exposta a crescentes humilhações. O tempo todo, ao longo de dias, semanas, meses, Emma é coagida a falar de si, especificamente sobre o seu envolvimento amoroso com outro colega de seção - em certos momentos, precisa quantificar o número de relações sexuais e avaliar o desempenho sexual do parceiro. Curiosamente, no entanto, nunca saberemos sobre a vida íntima da gerente.

De maneira bárbara e cruel, a chefe abusa de sua autoridade e ascendência, numa desigual disputa de poder. Ela explica que segue fielmente os termos do contrato e justifica a esdrúxula regra apontando o bem estar dos funcionários e a manutenção da produtividade da empresa, que não pode ser arranhada. Mais do que perpetrar assédio moral, a supervisora se torna proprietária de uma Emma transfigurada em fantoche que, para a sua sobrevivência dentro da companhia, terá de implodir simbolicamente a sua existência.

É fascinante a atmosfera ambígua, obscura e sinistra desencantada pela peça, cuja temperatura evolui assustadoramente o suficiente para enervar e entorpecer o espectador. Em que pesem a fachada de polidez e respeito, as reuniões não passam de disfarçada tortura psicológica. Com acento doloroso e amargo, Bartlett faz do patético e do despropositado um acontecimento verossímil e aceitável. 

A direção de Grace Passô mantém o jogo em movimento firme, febril e árduo, explorando a tensão sexual implícita. Numa opção discutível, cada cena é pontuada por toques musicais, que funcionam para ilustrar os vários estágios da trama. O som é executado por impassíveis músicos posicionados na borda do espaço do escritório – eventualmente Emma sai da sala e extravasa seu abatimento batendo violentamente uma bateria. A diretora investe energia na composição de um ambiente rarefeito, valorizando os diálogos insolentes e despudorados, sublinhando as atitudes humanas e desumanas das personagens, enclausuradas em uma sala fria e austera onde uma tubulação de ar condicionado corta o espaço e gradativamente gela o ambiente, criação do cenógrafo André Cortez.  

Sem sair do palco, as duas atrizes desembrulham desempenhos robustos, habitando mulheres mergulhadas em uma guerra na qual só há perdedores. No desafiador papel de dar vida a uma personagem que observa sua identidade ser lentamente destroçada, Débora Falabella encarna Emma com sensibilidade e compulsória passividade. Ela se desincumbe habilmente da tarefa de retratar uma figura fragilizada pela ansiedade e agonia, que em determinadas passagens perde o relativo controle emocional e deixa-se explodir pelo mais puro horror – principalmente quando uma gravidez acaba enredada nas obrigações contratuais. Yara de Novaes interpreta uma burocrata inflexível e manipuladora, sem nome revelado, que cinicamente acredita estar agindo de acordo com os melhores princípios da companhia. Sua performance é minimalista, crivada de nuances, dotada de ricas camadas dramáticas. O ritmo e o tom da sua voz seguem a mesma inflexão rígida, tanto nas saudações iniciais, quanto nas observações e pedidos que impõe à funcionária. Até quando não fala nada, valendo-se apenas do olhar, ela derrama temor e intimidação

Trata-se de uma montagem pulsante, que produz inevitável desconforto e aflição pela capacidade de reproduzir na caixa teatral um dos males presentes no mundo corporativo - a crescente intromissão de grandes empresas na esfera privada de seus empregados. Sem explicitar a ironia, o autor pinta essa discussão com tintas cruéis e uma lógica implacável. Com receio de perder seus empregos, os funcionários acabam tornando-se coniventes de arbítrios, baixezas e infâmias. Por isso, Emma se vê impotente e sem forças para afrontar o monstro. Ao contrário. Aos poucos, ela irá absorver o modo de pensar da multinacional em que ganha seu pão. Há uma sinuosa relação de complementaridade entre as duas mulheres. A peça é uma fábula aterradora e grotesca sobre um sistema capitalista que normatizou suas perversidades.    

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Vitor Zorzal)

 

Avaliação: Ótimo

 

Contrações

Texto: Mike Bartlett

Direção: Grace Passô

Elenco: Débora Falabella e Yara de Novaes

Estreou: 19/08/2011

Teatro Nair Belo (Rua Frei Caneca, 569, Consolação. Fone: 3472-2229). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 60 e R$ 80. Até 26 de junho. 

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