EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Uma Espécie de Alasca

Uma mulher mergulha em coma aos 16 anos e só desperta aos 45. Num piscar de olhos, ela dormiu adolescente e acordou na meia idade. O tempo subtraído de sua biografia é irrecuperável. Escrito, em 1982, pelo dramaturgo inglês Harold Pinter (1930-2008), o texto foi inspirado no tocante Tempo de Despertar, o livro do neurologista anglo-americano Oliver Sacks (1933-2015). No trabalho, o médico abordou as vítimas da doença do sono (encefalite letárgica) que, submetidas a testes com um novo medicamento descoberto na década de 1960, foram “ressuscitadas” depois de décadas de inconsciência. O tema foi transposto, inclusive, para as telas de cinema, em um filme homônimo (1990) estrelado por Robin Williams e Robert De Niro. 

Na trama parida por Pinter, que ganha o palco em versão dirigida por Gabriel Fontes Paiva, Débora revive após 29 anos adormecida. Ao descobrir que não sabe mais quem ela é hoje, sua única percepção é o estado que tinha na juventude, antes da eclosão do distúrbio. Então, ao retomar a existência, precisa gradualmente entender o que lhe aconteceu e ao mundo. Em uma pilha de monólogos, ela despeja lembranças de sua infância e adolescência – fala dos pais, do cão, do namorado, por vezes deixa escapar um pensamento erótico. Durante o transe da encefalite letárgica, ela conta que se sentia confinada em salões de vidro, na rotina de dançar noite após noite e ouvir uma torneira pingando intermitentemente. Estava trancada em uma espécie de Alasca. O público passa a compreender a sua situação, não só pelo dito como por aquilo que ela não verbaliza e faz. Ela é cuidada pela irmã mais nova Paulinha e seu marido, o médico Hornby, que tem dedicado boa parte de seu cotidiano ao tratamento da paciente. Ambos estão se preparando para aliviar a sua reentrada no território dos vivos.

O que o autor expõe é como uma doença roubou literalmente a fase adulta de Débora. Encerrada em uma cama que poderia muito bem simbolizar uma cela de prisão, o passado virou para ela um eterno presente. Por isso, não para de se lembrar das coisas. O mesmo campo temático foi explorado por Samuel Beckett em A Última Gravação de Krapp (1958). Nesta obra seminal, regada a diálogos cáusticos, um homem velho, solitário e fracassado rememora a vida que não viveu por meio das gravações que ele costumava gerar em cada aniversário seu.

Intencionalmente morna, a direção de Paiva passa ao largo dos arroubos dramáticos. Poderia até ser mais intensa e menos estilizada - a concepção audiovisual da montagem, assinada por Luiz Duva, é marcada por efeitos e concede uma atmosfera onírica a um enredo que por vezes requer corpo realista. Nada disso, no entanto, desidrata a encenação, que desliza em ritmo cadenciado e realça as pausas características do teatro de Pinter. O diretor instaura uma simplicidade apropriada às marcações e um esforço pleno em fixar as diferenças entre memórias e nostalgia nas falas e atitudes dos personagens. 

Toda a ação transcorre em um quarto estéril, ladeado pelo que parece ser as águas de um oceano. Uma ilha emocionalmente remota, permissível a chegadas e partidas discretas. Os três atores exibem sintonia com a linguagem poética do autor. A atriz Yara de Novaes expressa com perícia o jeito de menina de Débora, uma personagem atônita diante da nova circunstância, incapaz de forjar uma rota clara entre si e o seu entorno. Com expressões vagas, ela transpira a luta interna da paciente para absorver o novo, dividida entre sua juventude emocional e a idade física. Uma das cenas mais impactantes é quando ela olha para a irmã caçula e não acredita que, num lapso, virou uma mulher madura. Miriam Rinaldi concede à resignada Paulinha um ar sombrio e desesperançado, traços de quem abriu mão da própria vivência para cuidar de outra. Jorge Emil encarna o médico, sujeito prático e diligente, cheio de compaixão e afetos contidos. São figuras que vertem a sensação palpável de melancolia e pesar, o sentimento de que deixaram para trás, sem retorno possível, anos preciosos de suas existências.  

Pinter trata desse assunto comovente adicionando doses de doçura. É um viés diferente em sua dramaturgia, costumeiramente associada à tensão psicológica, ao rigor intelectual e humor negro. Sem a agudeza de clássicos como Volta ao Lar (1965), Festa de Aniversário (1957) e Traição (1978), é quase uma peça de câmara. Funciona como metáfora poderosa para aqueles momentos em que o passado se intromete no presente e o afoga. Como o tempo passa e o que eu fiz enquanto ele se movia? São reflexões comuns sobre a dor do envelhecimento, a impressão de que aproveitamos pouco a experiência da vida enquanto ela acontecia. O texto propõe uma meditação acerca da jornada existencial e das oportunidades desperdiçadas. É sintomático que nos minutos finais a água parece subir e a paciente escorrega de volta ao estado comatoso.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Leekyung Kim)

 

Avaliação: Bom

 

Uma Espécie de Alasca

Texto: Harold Pinter

Direção: Gabriel Fontes Paiva

Elenco: Yarade Novaes, Miriam Rinaldi e Jorge Emil

Estreou: 30/10/2015

Auditório MASP Unilever (Avenida Paulista, 1578, Cerqueira César. Fone: 3149 5920). Sexta e sábado, 21h; domingo, 20h. Ingresso: R$ 20. Até 29 de novembro. 

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