EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: O Sucesso a Qualquer Preço

O dramaturgo americano David Mamet se vale de um escritório imobiliário para construir uma parábola do capitalismo obsceno. Nesse ambiente, corretores se engalfinham em uma guerra na qual todos lutam contra todos. Logo na cena inicial, dois personagens selam um acordo calçado em suborno e corrupção. Na sequência, colegas de trabalho trocam ideias abjetas sobre um possível roubo. Mais adiante, um vendedor assedia de forma tão avassaladora um potencial cliente que a vítima mal consegue completar uma frase inteira antes de assinar a compra.

Eles são figuras cínicas e desesperadas, que perambulam por um universo sórdido e agora estão pressionados a negociar imóveis pouco atraentes nos arredores da cidade empregando, para isso, métodos escusos. O conflito que corrói o companheirismo já começa na disputa pelas fichas quentes, aquelas que concentram os melhores compradores. Curiosamente, não há mulheres no palco, apenas homens digladiando-se pelo poder e no afã de dominar o outro. Quem viu Oleanna, outra obra de Mamet, conhece a atração do autor pelos ritos de manipulação.

Nesta convidativa montagem, com direção de Alexandre Reinecke, a ofensiva dos tubarões que passam o tempo comendo uns aos outros não configura um drama áspero. Muitas vezes o espectador ri desse cardume de comportamento amoral, que se movimenta segundo o critério de que o fracasso é abominável e o sucesso produz o êxtase de um prozac. O texto recebeu o prêmio Pulitzer de teatro em 1984 e ganhou versão cinematográfica em 1992, estrelada por Al Pacino, Jack Lemmon, Alec Baldwin, Kevin Spacey e Ed Harris.

Tudo se passa em Nova York em 1970. São tempos complicados para o ramo imobiliário, as vendas estão baixas e a solução encontrada pelos gestores da firma é criar uma competição para estimular a equipe. Quem faturar mais durante aquele mês levará para casa um novo cadillac. Para o último colocado, o prêmio é a porta de saída.   Mamet desencadeia a corrida de ratos por meio de diálogos rápidos, cortantes, agressivos, quase sempre fragmentados. Shelley, Rick, Dave e George falam, discutem, ameaçam, vomitam palavrões. Eles sabem que frente a tais condições estressantes, vender acaba sendo um desafio que exige, além da sorte, assumir atitudes e ações vis. Como os clientes não passariam de presas desprotegidas, os corretores estão dispostos a dilacerá-los, porque não importa a satisfação de quem compra. Efetuado o negócio, querem mais é sumir do radar o mais rápido possível, antes que as vítimas percebam terem caído numa espécie de conto do vigário.      

Em um espetáculo que se apóia nas interlocuções nervosas e na exposição de relações destrutivas, cabe à direção avalizar uma encenação límpida, sem obstáculos desnecessários, tarefa convenientemente cumprida por Alexandre Reinecke. O diretor deflagra uma dinâmica que faz sobressair essa arena sem escrúpulos, garantindo ritmo e proximidade adequados à fruição do enredo. Sente-se a atmosfera tensa, os golpes desfechados no mercado imobiliário, o caos emocional dos personagens.


O elenco encampa desempenho homogêneo e captura o público tanto pela emoção quanto pela razão. Afinal, os personagens não são rasos e oferecem algo acima da superfície. Shelley Levene teve seus dias de glória na corretagem, mas seu sucesso do passado é prontamente esquecido. Em situação vulnerável, está aflito para pegar os contatos mais promissores, que estão sendo distribuídos aos vendedores mais bem sucedidos. Com desempenho forte e gestos calculados, Norival Rizzo vive esse homem que se esforça para passar a impressão de ainda ser um profissional vitorioso e não um sujeito no final de carreira. À medida que a trama se movimenta, e ele não consolida um único negócio, vai se tornando evidente que seu declínio é irreversível, mesmo que apele para o desgastado lema da autoconfiança. É comovente o momento em que tenta convencer o gerente a lhe fornecer as melhores fichas. Rizzo ignora o sentimentalismo barato e dá humanidade ao veterano que perde o controle e morre figurativamente.

Mais conhecido por seus papéis na televisão, o jovem Marco Pigossi surpreende pela naturalidade. Sua interpretação para Ricky Roma revela entusiasmo e estudo meticuloso do papel. O líder no quadro de vendas é o protótipo do sucesso vulgar, literalmente capaz de enrolar um inseguro comprador, a quem abordou de maneira despudorada em um bar. Ele atropela as falas do freguês e o “apunhala” pelas costas em meio a sorrisos insolentes e forjada simpatia. Pigossi empresta energia e frenesi ao personagem predador. Uma das passagens cruciais da montagem é aquela em que ele, para não perder uma venda efetuada, arma com outro colega uma novela fantasiosa dentro do escritório para ludibriar o consumidor.   

Renato Caldas encarna com pulso e vivacidade o rancoroso Dave Moss que, por desafiar as regras do jogo, deseja não só sair da empresa como até lesá-la. O ator concede-lhe um ar destemido e resoluto, salpicado por espírito traiçoeiro. Seu discurso é um alfabeto inesgotável de palavras e expressões chulas. Marcos Daud interpreta o corretor que não passa a menor confiança e só reclama. Sua silhueta magra contribui para realçar a fragilidade de George Aaronow. Atento aos meios tons, André Garolli incorpora o arrogante John Williamson, que chefia a tropa e alavanca o torneio selvagem. Trata-se de um tipo preparado para ouvir, esperar e atacar, que pilota as colisões e ardilosamente coloca um contra o outro. Ele sublinha a insensibilidade do gestor, outorgando a frieza necessária ao astuto e cruel funcionário capitalista. O momento em que contracena com Shelley traça uma das facetas de sua personalidade. Ciente de que o subordinado é um perdedor, ele se dá ao luxo de ser impaciente. Didio Perini faz o traído James Lingk. A sensação de desconforto e ansiedade do cliente é bem sinalizada pela composição gestual e dicção acionadas pelo intérprete. Com poucas intervenções, Alexandre Freitas demonstra segurança na pele do detetive durão Baylen, um agente que investiga o roubo e deseja desbastar até a fanfarronice dos empregados. 

A peça desvela que, num território ocupado por gente sem ética, inexiste traços de amizade ou sincera lealdade. Por conseqüência, qualquer noção de moralidade é logo vista como subterfúgio dos derrotados. Os corretores se comportam de modo implacável para não serem devorados por um sistema que esmaga os mais fracos. O desfecho é sintomático: acuado, abatido, combalido, Shelley mal consegue se levantar para o encontro com o detetive. Ele vestiu a capa de um anti-herói trágico. 

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )   

(Foto João Caldas)

 

Avaliação: Ótimo

 

O Sucesso a Qualquer Preço

Texto: David Mamet

Direção: Alexandre Reinecke

Elenco: André Garolli, Marco Pigossi, Norival Rizzo, Renato Caldas e outros.

Estreou: 19/06/2015

Teatro Vivo (Avenida Dr. Chucri Zaidan, 860, Morumbi. Fone: 97420-1520). Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 50 e R$ 60. Até 6 de setembro.

 

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