EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Dentro É Lugar Longe

No terminal rodoviário, os 28 espectadores recebem malas de viagem e são convidados a embarcar num ônibus, cuja lataria externa está com aparência de empoeirada. Já devidamente acomodadas nos bancos, os agora passageiros ajudam a cobrir as janelas com cortinas. Em poucos minutos, o coletivo começará a circular por ruas e avenidas do centro da capital paulista, enquanto uma peça de teatro transcorre em seu espaço interno. Mais do que uma jornada pela geografia da cidade, o público estará mergulhado em um périplo por memórias - amargas, festivas, doloridas, encantatórias – garimpadas da infância dos intérpretes. Como é informado logo no início da viagem, eles estão ali para contar o que fizeram e não fizeram, o que viram e não viram em suas vidas.

Não é a primeira vez que a intrépida Trupe Sinhá Zózima transforma o corredor de um coletivo em ambiente cênico. Faz parte do trabalho e das pesquisas formais do jovem grupo estabelecer uma metáfora entre a viagem de ônibus, com curvas, cruzamentos, ruas estreitas, avenidas largas, estradas longas, e a travessia pela vida, também pontuada por solavancos, descidas, subidas e desvios de rotas. É uma analogia poderosa, que a encenação pilotada por Anderson Maurício faz questão de acentuar em detalhes pontuais, como as lâmpadas internas do veículo, forradas por negativos de fotografias, e o carinho com que os personagens mostram ao público fotos de familiares tiradas do baú. Em Cordel do Amor Sem Fim, de Cláudia Barral, e Valsa nº 6, de Nelson Rodrigues, a companhia já se utilizara desse meio de transporte para instaurar um diálogo com a cidade a partir do olhar de quem se encontra dentro do coletivo. No atual trabalho, a proposta estética surge mais amadurecida e orgânica.

Costurada por Rudinei Borges, a dramaturgia não se caracteriza pela profundidade ou a busca pela psicologia das lembranças. O roteiro é eminentemente afetivo, filtrado pelo universo das emoções infantis que, como sabemos, ainda não são vulneráveis aos contratempos da existência adulta. Ou seja, a narrativa de eventos e reminiscências do passado emerge hoje envolta na bruma da sensibilidade, da espontaneidade, transfigurada. É uma espécie de fábula, na qual o importante é o que ela revela e ao mesmo tempo esconde ou dissimula. Trata-se de um equívoco tentar entender o espetáculo como se fosse um mero empilhamento ou sucessão de histórias pessoais e intransferíveis. O mais apropriado, e nisso ele funciona satisfatoriamente, é compreendê-lo como um passeio poético por vivências que, guardadas as especificidades, são universais.  O que captamos de nosso passado, as sobras, os resíduos ainda vivos. A montagem tem o condão de despertar sensações, avivar emoções, fazer voltar aos primeiros tempos da aventura humana.

Na montagem, não há uma divisão óbvia entre passado e presente, entre memórias verdadeiras ou construções ficcionais. Os personagens não são identificados por nomes e é quase impossível defini-los apenas pelo comportamento aparente. A imprecisão é proposital, como normalmente são as nossas lembranças. Os cinco atores se apresentam apenas como meninos e meninas, no papel e função de narrar ludicamente o ir e vir da vida, por meio de enredos simples só na aparência, porém eivados de significados.   

Delicada, despretensiosa e sem afetação, a montagem celebra tanto os momentos mágicos das brincadeiras infantis, como o olhar ingênuo das crianças para a vida e até situações de dor propiciadas, quase sempre, pela perda de entes queridos. O público ri, chora e sonha. Uma personagem lembra que no lugar onde nasceu, sem luz elétrica, o avô desligava a tevê nos intervalos comerciais para economizar a bateria e que, algumas vezes, a peça pifava justamente no meio da exibição da novela. Outra diz que passou boa parte da infância no hospital, por conta de uma bronquite alérgica, e confessa o quanto desejava tomar a sopa oferecida. Uma delas conta que sofreu tanto com a morte do pai que quis acreditar que ele apenas partira num caminhão para a Bahia. “Quando cheguei lá, dei-me de cara com o vácuo do vento”, resigna-se. Em outro momento pungente, uma avó se despede da neta. Duas horas mais tarde, ao chegar em casa, a menina terá uma surpresa indesejada.

O curioso, no espetáculo, é que as cenas dramáticas se metamorfoseiam. A morte, tão dolorida no mundo adulto, pode ganhar outros significados segundo o olhar das crianças. Uma personagem se lembra da irmã que viveu apenas sete dias. Em seguida, uma relação do que é possível fazer nesse período de tempo é desfiada.  “Sete dias é tempo suficiente para olhar marés e âncoras e barcos que partem do cais e nunca mais voltam”. Há cenas francamente líricas, como a do menino que carrega uma estrela nas mãos. Ele lembra que toda vez que uma mãe faz cafuné no filho, um desses astros desponta no céu. “Ando com esta estrela numa garrafa para não esquecer de onde vim, o que fui, o que sou”, ele anuncia. Ao lado de uma praça, os espectadores acompanham pela janela o dia em que os pais de uma menina se conheceram e fizeram juras de amor em frente à igreja. Nessa mesma sequência, alguns personagens correm pelas calçadas,  deitam-se nos bancos, correm alegres para lá e para cá. Exatamente o que faziam no quintal de suas casas na infância.

A encenação tem suas imperfeições, como quando o ônibus estaciona e cenas simultâneas acontecem no interior e no ambiente externo, pulverizando a atenção – uma dispersão, aí involuntária, acontece quando o ônibus circula por ruas da cracolândia. Ou a sensação de que, por instantes, o encadeamento de lembranças e memórias embola perigosamente e a narrativa perde o viço. São arestas e descaminhos que não chegam a corromper a singeleza que contamina a montagem, recheada de suaves cantos e cantigas executadas pela sanfona de Junior Docini. Um punhado de marcações criativas, procedimentos inventivos e imagens de forte impacto permeia o espetáculo. No momento em que um grupo de meninos aguarda a permissão de apanhar mangas no chão, as portas do ônibus vão se fechando em série e o som ouvido ilustra a tensão e a angústia da espera. Num trecho em que o menino se recorda da morte do pai, uma caixinha que o falecido gostava vira um caixão e prendedores de roupas, presos nos dedos de uma menina, simbolizam os familiares. Vibrante, o elenco contagia o público com a naturalidade dos contadores de histórias. As quatro atrizes e o único ator se movimentam pelo corredor, ocupam bancos vazios, aglomeram-se na frente ou atrás do ônibus, interagem. Representam sozinhos, em duos, trios, todos juntos. A Trupe Sinhá Zózima agrada pela voluntariedade, a eletricidade, o afeto febril. Trata-se de um trabalho que aborda a matéria do sonho não como uma instância para se guardar, mas para se viver. 

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Bom

 

Dentro é Lugar Longe

Texto: Rudinei Borges

Direção: Anderson Maurício

Elenco: Alessandra Della Santa, Maria Alencar, Priscila reis e Tatiane Lustoza e o ator Junior Docini

Estreou: 07 de maio

Terminal Parque Dom Pedro II. Terça (11) e quarta (12), às 20h Grátis. Reservas pelo fone 96292-0447. Distribuição de ingressos uma hora antes.

 

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