EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

  • Font size:
  • Decrease
  • Reset
  • Increase

Teatro: O Bom Canário

Incômoda e obsessiva, a peça do dramaturgo e roteirista de cinema norte-americano Zacharias Helm (Mais Estranho que a Ficção) aborda doenças modernas, discute graus variados de alienação e expõe impasses dos tempos atuais. O curioso neste texto, porém, é que temas como estupro, anorexia e crueldade afloram não de forma escancarada e abusiva, mas de maneira quase natural, emoldurada por uma encenação leve e um tanto solene. Nessa arena ocupada por personagens de personalidades controversas, moralmente lesados, que parecem impelidos à autodestruição, o autor tece uma reflexão sobre a natureza humana, dilemas sobre o processo criativo, o embate entre a realidade e a ficção. Ninguém escapa ileso desse ambiente de mentiras e verdades, violência psicológica e depressões. A trama transcorre em Nova York, especificamente no circuito da intelectualidade literária. Tem início com a notícia do lançamento exitoso de um livro de Jack, um romancista promissor. A obra seria inspirada num evento doloroso do seu passado. Estranhamente, Annie, sua mulher, desdenha do sucesso e ainda demole a crítica publicada. O casal não está às turras, como poderia suscitar. Ao contrário, ambos parecem inebriados pela paixão.   

É em torno dela que os acontecimentos ganham corpo e fluem. Espécie de heroína trágica, Annie é uma figura tão vulnerável quanto transgressora. Canaliza suas energias para preservar sua singularidade e não ser corrompida pela indistinção exercitada e cultuada nos dias atuais. O mundo parece ser a mesma e tediosa coisa. Para isso, vale-se de anfetaminas para escamotear suas angústias de hoje – na adolescência, havia criado o vício para suportar a silhueta arredondada. O falso bem estar afeta tudo e a todos, especialmente o marido, beneficiário desse alheamento, ainda que ele tente em vão convencê-la a abandonar os aditivos químicos. Claro, é uma personagem prestes a explodir no instante seguinte. Assinada pela dupla Rafaela Amado e Leonardo Netto, com supervisão geral de Camilla Amado, a montagem faz reverência ao texto, um retrato implacável da devastação da moral e ética humanas.    

Em desempenho robusto, Flávia Zillo dá vida a essa mulher avessa às hipocrisias, meio inoportuna e de humor instável, capaz de transitar da delicadeza à agressividade em minutos. Um comportamento suicida, como facilmente se nota. Em um jantar na residência de um grande editor, disposto a bancar o próximo romance de Jack, ela avilta o nível da conveniência e diz exatamente o que pensa para os convidados, sem medir as conseqüências, o que contribui para por no freezer o projeto editorial. Seu alvo predileto é um prestigiado crítico literário, autor de resenhas que ela simplesmente abomina e despreza. Annie não digere a idéia de que, para selar um contrato milionário, o marido abdique do valor intrínseco da arte em troca do vil metal. Na pele de Jack, Joelson Medeiros tempera o personagem com porções de angústia, remorso e desespero – seu monólogo final é tão comovente que estabelece uma suspensão na platéia. A fauna que circula no palco é acrescida ainda por Charlie (Érico Brás), agente carreirista e oportunista que atua na indústria literária pornográfica, o ambíguo crítico literário Mulholand (Marcos Ácher), o cínico traficante Jeff (Leandro Castilho), o grande editor Stuart (Roberto Lobo) e sua fútil mulher Sylvia (Sara Freitas).  

Em momento algum a peça abre espaços para o relaxamento. O público irá observar que a trama permite-se uma reviravolta suficiente para amarrar certos elementos e iluminar de vez o comportamento pouco convencional do casal, atribuindo-lhe uma lógica. Notadamente realista, a direção cria em várias passagens uma distância calculada dos acontecimentos, o que reforça as histórias individuais e faz o espectador mergulhar mais ainda no frenesi dos tormentos. Trata-se de uma peça permeada por personagens interessantes e diálogos inteligentes, que recebeu encenação com marcas inventivas e pautada pelo equilíbrio na maneira como desenvolve e dosa o agravamento das situações. Em suas quase duas horas de duração, nada passado do ponto. Austero, o espetáculo é cercado de cuidados: da iluminação de Luiz Paulo Nenen, aos figurinos de Ney Madeira, Dani Vidal e Pati Faedo e a cenografia de Marcelo Lipiani e Lídia Kosowski, tudo é simples e funcional. Com sutil sensação de tensão e desarmonia, o texto faz prevalecer a tese de que a dignidade humana está sempre no fio da navalha.
(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Paula Kossatz)

 

Avaliação: Ótimo

 

O Bom Canário

Texto: Zacharias Helm

Direção: Rafaela Amado e Leonardo Netto

Direção Geral: Camilla Amado

Elenco: Flávia Zillo, Joelson Medeiros, Érico Brás e outros

Estreou: 02/06/2012

Teatro Eva Herz (Livraria Cultura. Avenida Paulista, 2073, Cerqueira César. Fone: 3170-4059). Sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 60. Até 29 de julho.

Comente este artigo!

Modo de visualização:

Style Sitting

Fonts

Layouts

Direction

Template Widths

px  %

px  %