EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

  • Font size:
  • Decrease
  • Reset
  • Increase

Teatro: Incêndios (RJ)

O texto de Wajdi Mouawad, dramaturgo libanês radicado no Canadá, é incômodo e balança entre o drama individual e a tragédia social. Ao mesmo tempo, funciona como thriller de mistério político. Este enigmático e surpreendente quebra-cabeças, transposto para as telas de cinema em 2010, num elogiado filme dirigido pelo cineasta canadense Denis Villeneuve, ganhou inspirada montagem brasileira. A pulsante adaptação, assinada por Aderbal Freire-Filho, dá conta de abordar uma história que captura e expressa sua força por meio de uma narrativa nada convencional, personagens fortes, eventos de inegável apelo emocional e desfecho arrasador.      

Logo no início, o tabelião Lebel (Márcio Vito) recebe em seu escritório os gêmeos Jeanne (Keli Freitas) e Simon (Felipe de Carolis). Não por acaso, sua fala parece se dirigir mais à platéia do que para os irmãos. Ele fará a leitura do testamento deixado pela mãe deles, a árabe Nawal (Marieta Severo), que tempos atrás fugira de seu país por causa da guerra civil religiosa, radicou-se no Ocidente e acabou de morrer. Nos últimos cinco anos, aliás, por conta de inúmeros traumas, ela manteve-se em obsequioso silêncio, sem conseguir se comunicar com os seus filhos, numa espécie de estado catatônico. Nawal deixou um documento desconcertante, com duas estranhas instruções: a professora de matemática Jeanne teria de entregar uma carta ao pai, que os dois acreditavam estar morto, e caberia ao lutador de boxe Simon levar outra correspondência destinada ao irmão de ambos, que nunca souberam de sua existência. Sem o cumprimento dessas duas condições, seu sepultamento não seria completado. Em função disso, e para desvendar as raízes biográficas da mãe, eles terão de viajar até a aldeia natal dela, instalada num convulsionado Oriente Médio. Quem primeiro embarca é Jeanne, contrariando o relutante e pavio curto Simon. O autor, por sinal, nunca indica com clareza o local específico da ação, mas se supõe que seja o Líbano. A justificativa mais evidente para a ausência de identificação geográfica é a busca pela universalização do drama, a convicção de que a barbárie desconhece fronteiras e é uma doença que assola a humanidade.  

Estamos diante de uma trama cujo eixo central é a maternidade, ou a sua negação. A mãe é uma cristã que se apaixonou por um refugiado muçulmano, assassinado pela família dele, e se vê forçada a renunciar ao filho. Em sua jornada à procura do menino, em orfanatos e campos de refugiados, ela adere à guerrilha, acaba presa e é torturada. Nesse tempo, seu filho havia se transformado em um sanguinário guerrilheiro. Trata-se de um enredo de destinos anônimos que se emaranham ao longo de várias décadas. O passado de Nawal é uma trilha de desgraças, de violações físicas e mazelas morais. Um ciclo de violência chocante que vai reverberar irreversivelmente na vida dos irmãos gêmeos na medida em que indícios e provas os levarão a descobertas devastadoras.    

Sem ordem cronológica, a peça se erige a partir das fusões de tempo, espaço e lugar, com sobreposição de acontecimentos vivenciados no Ocidente, relatos da trajetória de Nawal, a viagem de Jeanne e os vaivens de Simon. Toda a história pode ser um tanto complicada à primeira vista, e de certa forma o é, mas o espetáculo se sustenta pelo dinamismo e o público é seduzido lentamente pela proposta do jogo, que ecoa o legado das tragédias gregas e flerta com Mãe Coragem e Seus Filhos, clássico de Brecht. Uma das cenas serve como metáfora dos eventos. É aquela em que Jeanne esboça graficamente um polígono de cinco lados. Cada membro de sua família está posicionado em um canto e, embora os pontos se unam, um não enxerga o outro. Os objetos alcançam, aqui, a dimensão de símbolos. Um casaco, por exemplo, traz estampado o número de Nawal na prisão. Um caderno vermelho retém a descrição da experiência de estupro a que foi submetido um personagem. Um balde tanto pode conter água quanto servir de cama para um bebê.  

Em que pese o ritmo desacelerado, o espetáculo consome duas horas sem cansar o público. Com discernimento, a direção preserva a tensão das cenas, valoriza a teatralidade nas transições das mesmas, ignora movimentos espetaculares e torna orgânica a teia de conexões entre os personagens. Há regularidade visível na montagem, mesmo com dissonâncias aqui e ali. Aderbal não explora a reflexão política e procura se concentrar no âmbito do drama humano. Ele domina, com desembaraço, os diversos cruzamentos atemporais e planos simultâneos estabelecidos na trama, como a sequência em que Jeanne tece suas conjecturas matemáticas, Simon se prepara para uma luta e episódios da vida  de Nawal são revividos no palco. O diretor chega a criar imagens interessantes, caso da fusão corporal dos gêmeos.   

Nessa encenação induzida por situações doloridas e personagens que procuram construir e reconstruir suas vidas, a performance do elenco precisa ser intensa, porém não melodramática nem se deixar lambuzar por gorduras sentimentais. O grupo é convincente, atua com afinco e encontra um registro comum de interpretação. No papel de Nawa, a atriz Marieta Severo deflagra uma composição gestual de aspereza calculada, um tipo de rigidez na expressão que materializa a desolação existencial e o abatimento de uma mãe mergulhada em depressão. Keli Freitas faz uma Jeanne mais racional e circunspecta. Na contramão, o Simon de Felipe de Carolis é uma figura mais impulsiva e ressentida. Com boa presença cênica, Flávio Tolezani dá vida ao franco atirador, um miliciano que mata indiscriminadamente e carrega o peso de uma trajetória desajuizada. Márcio Vito irradia ironia amarga no desempenho do oficial de registro Lebel, o único personagem que insinua algum naco de humor. Com técnica apurada e nuances, Kelzy Ecard vive a introspectiva Sawda, a amiga de Nawal, para quem legará a alcunha de mulher que canta. Fabianna de Mello e Isaac Bernat incorporam com assertividade um leque de personagens arquetípicos.

Se não configura uma parábola, o texto deixa entrever e evoca alguns sentidos pertinentes, como a fragilidade da condição humana, a necessidade de instilar o humanismo como motor de resistência à beligerância do mundo. Se é correta a afirmação de que incêndios costumam causar devastações, não é errado pensar que da experiência dos destroços é possível vislumbrar sinais de renascimento. 

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Léo Aversa)

 

Avaliação: Ótimo

 

Incêndios

Texto: Wajdi Mouawad

Direção: Aderbal Freire-Filho.

Elenco: Marieta Severo, Keli Freitas, Felipe de Carolis, Flávio Tolezani, Kelzy Ecard e outros.

Estreou: 19/09/2014

Teatro Carlos Gomes (Praça Tiradentes, 19, Centro. Fone: 21. 2224-3602). Quinta a sábado, 19h30; domingo, 19h. Ingresso: R$ 40 e R$ 60. Até 03 de maio.

 

Comente este artigo!

Modo de visualização:

Style Sitting

Fonts

Layouts

Direction

Template Widths

px  %

px  %