EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Aqui Estamos com Milhares de Cães Vindos do Mar

Nesta interessante e curiosa montagem da Companhia Os Barulhentos, o espectador é convidado a embrenhar-se na obra de um autor que disponibiliza uma visão singular do mundo. Trata-se do dramaturgo e jornalista romeno Matéi Visniec, para quem o sentimento humano é vago e o mundo se encontra em estado de coma. Em seu olhar cético, que não rejeita porções de surrealismo e um tipo de humor mordaz e cáustico, o homem não passa de uma criatura que lida de forma perversa com o cotidiano, o outro, a sociedade, o Poder, o amor e a morte. Os textos quase sempre concisos nunca se prendem a um único tema. Propõem muitos níveis de reflexão. Ele trata dos fantasmas que atormentam o indivíduo, das patologias sociais e de questões políticas que tanto emanam das ditaduras – ele se exilou do regime totalitário de Nicolae Ceausescu e se radicou na França em 1987 – como advém das plenas democracias, por meio de uma espécie de ditadura do consumo.    

Nitidamente influenciada por escritores fundamentais como Eugene Ionesco, Samuel Beckett, Franz Kafka, Friedrich Dürrenmatte Gabriel Garcia Marquez, sua dramaturgia tem sido publicada no País pela Editora É Realizações. Uma fração de seu teatro chegou recentemente aos palcosbrasileiros, em montagens como A Volta para Casa, com direção de Regina Duarte, 2 x Matéi, assinada por Gilberto Gawronski, e  Espelho para Cegos, pelas mãos de Márcio Meirelles.   

Pilotada por Rodrigo Spina, a trupe se apodera do material e desembrulha um espetáculo diligente, bem cuidado e de fácil envolvimento, que valoriza o ecletismo narrativo do escritor, a habilidade com que ele manipula as palavras e a poesia que brota das situações mais grotescas e absurdas. As catorze peças reunidas foram pinçadas do instigante livro Cuidado com as Velhinhas Carentes e Solitárias e uma delas forneceu o título do trabalho. Aqui Estamos com Milhares de Cães Vindos do Marflagra um cego que vive maltratando o cachorro que o acompanha, acusando-o de incompetente e de querer lhe assassinar. Até que o dono do animal é levado para uma falésia, de onde espreita sair do mar uma matilha de cães decidida a invadir a cidade.     

Pontuadas por uma climática trilha sonora, as tramas escancaram liricamente a tragédia humana e evocam parábolas sobre situações opressivas. Não se trata de um teatro refugiado no proselitismo, que flerta com o convencional e o previsível. A encenação do grupo é reverente ao conteúdo político, às histórias de amor, ao registro onírico da realidade. O olhar da jovem equipe capta e manifesta essa torre de babel de mal-entendidos, a miséria humana e os sentimentos de culpa e vergonha que parecem fustigar os personagens. Em Carona, uma jovem mulher e um homem mais maduro pedem carona na estrada, cada um seguindo uma direção. Ele propõe fazer amor, ela aceita, mas não quer que seja no deserto. Finalmente ele renuncia ao projeto e se despedem. O oceano ocupa o lugar do deserto em A Grande Ressaca. Duas pessoas já não se reconhecem mais, há incompreensão e torpor, o tempo e o esquecimento arruinaram a relação. Relevantes nos dois contextos, as paisagens revelam a permeabilidade dos afetos, os abismos sentimentais em suas mais pungentes formas.  

A escrita de Visniec também faz denúncia da injustiça, da condição alienada do homem contemporâneo. No emocionante Espere o Calorão Passar, encenada à meia luz, mãe carrega o filho e espera cruzar a fronteira para retornar ao seu país de origem. Uma voz do Google interdita sua intenção. Uma cidade sitiada é o ambiente de Pense que Você é Deus. Moradores estão na mira de dois atiradores, que exercitam um bingo brutal e cínico. No fabuloso A Volta para Casa, um general percorre o campo de batalha e convoca os mortos a se prepararem para o festivo desfile do Dia do Grande Perdão. Um homem esquecido numa estação de trem abandonada protagoniza A Blasfêmia.  

O andamento da montagem é fluído, sem pressa, sereno. Eventualmente o bom ritmo se esgarça, provocado pelo excesso de histórias trabalhadas. Em outros instantes, a sutileza cairia melhor no lugar do acento meio histriônico, como aplicado ao conto A Máquina de Pagar Contas, no qual uma garçonete se dirige aos clientes marionetes. Um ponto ou outro fora da curva, que não chega a macular em nada o empenhado espetáculo. Até porque os acertos sobressaem. Basta observar, por exemplo, Cuidado com as Velhinhas Carentes e Solitárias. A aula sobre o ato de mendigar é um simulacro da pregação dos cultos evangélicos, com o palestrante emulando a figura de um pastor.  

Para dar vida ao mundo labiríntico de horrores e as imagens fantasmagóricas, Spina buscou implementar no palco identidade própria. Ciente de que o catálogo de textos não segue uma lógica narrativa visível, mas outorga um panorama de situações, ele buscou caracterizar esse universo entrelaçando as peças, como se fosse um jogo de lego teatral. Elas começam, são interrompidas, mais adiante retornam e finalizam – nem todas, diga-se, porque algumas deslizam num único plano, sem cortes.

O recurso das idas e vindas de personagens e circunstâncias poderia confundir o espectador, porém não é isso o que acontece. Encadeados de forma inteligente, os quadros até adquirem outros significados. As narrativas entrecortadas abrem espaço para invulgares sincronismos. Por exemplo: enquanto um casal discute a relação após transarem (Não Sou Mais Sua Coelhinha), uma discussão irritadiça acontece entre um guarda-costas e uma mulher grávida à espera da aparição da Virgem Maria (Sanduíche de Frango). Em outra sequência, dois entrechos parecem se fundir e virar um único enredo (A Ferida e O País Está Consternado).  

Visualmente, a encenação gera impacto. Cenário, figurinos e atores são totalmente tingidos de tons cinza, branco e preto. A privação de nuances de cor produz efeito de estranhamento no público, um aviltamento de sua percepção visual, a sensação de que alguma coisa está em desordem. Tal impressão de deslocamento da realidade parece sintonizada ao realismo poético do teatro de Visniec. Outras cores são observadas em apenas duas passagens, numa cena em que bolinhos de carne são triturados e na hora em que um enorme espelho instalado no fundo do palco reflete a plateia.     

O elenco atua como um conjunto harmonioso e apresenta rendimento uniforme, exercitando-se por escalas de sentimentos e emoções. Com exceção de um, os demais atores incorporam mais do que um personagem. Eles estão em perfeita consonância com a linguagem fraturada, mas tensa e inquieta do autor, e circulam por ambientes como um quarto de casal, uma lanchonete, rua, uma varanda estilhaçada. Moshe Motta projetou um espaço devastado. É possível destacar Lucas Horita (nos papéis de cego e fotógrafo), Gustavo Pompiani (Vibko, que ensina o menino a matar, e palestrante da aula de mendicância), Pedro Camilo (homem da estação do trem e guarda-costas) e Clara Rocha (prisioneira e mãe da fronteira). Os Barulhentos surpreendem com espetáculo maduro, formalmente ousado e de luz própria.    

 (Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Valerie Mesquita)

 

Avaliação: Ótimo

 

Aqui Estamos com Milhares de Cães Vindos do Mar

Texto: Matéi Visniec

Direção: Rodrigo Spina

Elenco: Cadu Cardoso, Domitila Gonzalez, Lia Maria, Lucas Paranhos, Marina Campanatti, Murilo Zibetti e outros.                               

Estreou: 14/03/2014                                                                                                                       

Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro, 1.000, Liberdade. Fone: 3397-4002). Sexta e sábado, 21h; domingo, 20h. Ingresso: R$ 20. Reestreia 11 de setembro. Até 25 de outubro.

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