EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: A Velha

O público que procura uma trama clara e acessível pode desistir. Nada de história linear, com início, meio e fim. Fragmentado, desordenado e descontínuo, o enredo parece começar de nenhum lugar e chegar à parte alguma. Na verdade, isso pouco importa. O espetáculo assinado pelo prestigiado encenador americano Bob Wilson é uma livre adaptação de um conto surreal do escritor russo Daniil Kharms (1905-1942), adaptado por Darryl Pinckney. Habitualmente em seus textos, o autor tece sutis comentários sobre a falta de sentido da existência humana. Não à toa o personagem central desta peça, vivido pelo ator americano Willem Dafoe e o bailarino russo Mikhail Baryshnikov, é um sujeito que busca um significado para a sua vida.

O espetáculo neutraliza qualquer indiferença. Estreou na Inglaterra no ano passado, pisou em Paris e deslocou-se até Nova York. Agora, cumpre temporada brasileira. Entrecortada por números de vaudeville, gênero burlesco de variedades, e sequências típicas do cinema mudo, a montagem ilumina a história de um escritor que encontra em seu apartamento o cadáver de uma mulher idosa. Receoso de ser culpado por sua morte, ele esconde o corpo em uma mala de viagem, que acaba misteriosamente desaparecendo em uma estação de trem. A partir desse acaso, o protagonista passa a ser assombrado pela figura da morta. Estamos diante de uma fábula provocativa e absurda. Em meio a esse caos aparente, emergem ainda relatos sobre mulheres que despencam de janelas, a descrição dos efeitos da fome, a dificuldade de se contar até oito corretamente, a vilanização das crianças. 

A encenação entrega não só uma instigante combinação de real e imaginário como oferece um contraponto visível. Se a obra de Kharms tem contornos sombrios e passeia com certa amargura pela condição humana, a encenação de Wilson imprime narrativa leve e humorada, de ritmo irreverente e acento quadrinesco. Visualmente exuberantes e coloridas, as cenas lembram instalações de arte. O público é atraído tanto pelo insólito dos eventos quanto pela justaposição de tons e linguagens na maneira de materializá-los no palco.

Não deixa de ser verdade que a estética de Wilson mudou quase nada ao longo de sua carreira. Ele continua seduzindo as plateias por meio de uma cenografia rigorosa, iluminação absurdamente autoral, movimentos em câmera lenta, uma refinada textura sonora e marcações surpreendentes. O prato servido é o mesmo, porém com sabores diferentes. Neste espetáculo com linhas geométricas, cadeiras flutuam, uma cama é dobrada de forma incomum, relógio não tem ponteiros, portas levam ao nada, há gaiola e uma espécie de persiana que simula o deslocamento de um trem. Pode parecer aleatório, mas não é: trata-se da mente paranóica de um escritor às voltas com acontecimentos nada triviais em seu cotidiano. Por ilustrar os paradoxos do destino e a irracionalidade do comportamento humano, a peça tem ecos da tragédia humana de Dostoievski, flerta com a estranheza de Ionesco e emula a solidão de Beckett. Talvez não seja exagerado vislumbrar na trajetória do personagem central a fragilidade típica do homem de Kafka e a insinuação de que a velha simbolizaria o opressivo Estado stalinista da época – Kharms foi morto pela ditadura soviética por ter sido considerado subversivo. 

Em cena, Baryshnikov e Dafoe articulam-se como clowns. Ambos se apresentam vestidos em smokings e com cabelos penteados que podem ser metades de uma mesma cabeleira. Com rostos brancos expressionistas e movimentos estilizados chaplinianos, a estreita ligação e a dependência mútua lembram a química emanada, por exemplo, pela famosa dupla de comediantes Abbot e Costelo. No decorrer da trama, eles se desfiguram e um se torna o outro em diversas situações. Complementam-se. Ambos dançam, bebem vodka, cantam, comem salsichas, desembrulham monólogos engraçados e bisam frases na mesma cena em diferentes entonações. Mesmo reféns da precisão formal da direção, cada um encontra uma partitura própria. Dafoe exibe expressividade física, tem voz rouca poderosa e transmite a angústia de um escritor atormentado. Suas ações soam mais agressivas e determinadas. Baryshnikov se move com trejeitos incorporados em sua longa experiência no balé. Seu humor sinaliza um viés mais amargo. Eles também interpretam a mulher morta, uma jovem e um amigo do escritor, sem praticamente mudanças corporais ou vocais. Em algumas sequências, Baryshnikov se expressa em russo e Dafoe em inglês. O espetáculo agrada porque, apoiado em verve fina e arguta, abre espaço para algum tipo de reflexão. Como a sensação de que estamos sozinhos em um mundo ilógico. Na peça, absurdo e realidade são duas faces da mesma moeda. 

(Por Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Velha

Texto: Daniil Kharms, adaptado por Darryl Pinckney

Direção: Bob Wilson

Elenco: Mikhail Baryshnikov e Willem Dafoe

Estreou: 24/07/2014

Sesc Pinheiros (Rua Paes Leme, 195, Pinheiros. Fone: 3095-9400). Quarta a sexta, 21h; sábado, 16h e 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 20 a R$ 60. Até 3 de agosto. 

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