EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?

Na dramaturgia de Edward Albee, as aparências iludem, a realidade ganha contornos de fantasia e as relações humanas parecem fadadas ao fracasso irremediável. É o caso, por exemplo, da dupla de casais desta peça escrita em 1962. São quatro personagens que, ao longo de uma extenuante madrugada, se envolvem em cruéis disputas emocionais e provocações de variados níveis e intenções. Nessa jornada em ritmo crescente, o mal estar é pincelado com traços sinistros. Ao cabo, a sensação é a de que os casamentos de Jorge/Marta e Nick/Mel nada mais são do que tragédias anunciadas desde o instante em que se conheceram. Curiosamente, o texto de cinco décadas atrás não acumula poeira ou projeta flacidez dramática. Ao contrário até, continua tão atual quanto embaraçoso e inquietante. O tempo não foi suficiente para entorpecer o fato de que as pessoas são capazes tanto de amar quanto ferir um ao outro simultaneamente. No cinema, a versão protagonizada por Elizabeth Taylor e Richard Burton (1966), na ocasião casados na vida real, popularizou o enredo desses casais decadentes e faturou cinco categorias no Oscar.

Dirigida por Victor Garcia Peralta, a montagem não precisa se valer de uma excessiva dramatização para incomodar o público com sua tensão latente, as agressões psicológicas, as mágoas e ressentimentos expelidos pelos personagens. De forma natural, por meio de diálogos agudos, palavras que perfuram como balas e atitudes intoxicadas de perversidade, a história vai desnudando o caráter de cada um deles em cena. E o monstro que se configura não é nada palatável.    

A trama tem início quando os anfitriões Jorge (Daniel Dantas) e Marta (Zezé Polessa) recebem em sua residência um casal mais jovem, Nick (Erom Cordeiro) e Mel (Ana Kutner), logo após os quatro terem participado de uma badalada festa na comunidade acadêmica local. O dono da casa é professor de História e sua mulher é filha do reitor da universidade onde ele leciona. Por sua vez, o convidado acabou de ingressar no centro superior de ensino como professor de Biologia e está acompanhado de sua esposa. Apesar da distância etária, os casais não são tão discrepantes assim. Em escalas diferentes, ambos vivem relação de amor e ódio, precisam resguardar certos segredos para manter as crostas de normalidade e parecem guiado ao mesmo precipício. Em muitos aspectos, Nick e Mel acabam sendo as imagens invertidas de Jorge e Marta. Não é de estranhar que, encurralados em um jogo impiedoso, cansados um do outro e bebendo além da conta, eles sejam levados a um perigoso descontrole. Começam a perder o decoro, as crenças e as conveniências. Rapidamente, o verniz dos bons tratos e da máscara social cede aos impulsos mais desagradáveis e indesejados.   

Com quase duas horas e meia de encenação, deslizadas de forma eletrizante, a encenação de Peralta instaura uma dinâmica ajustada ao drama escancarado. O olhar respeitoso do diretor à dramaturgia de Albee faz com que as insinuações, as descomposturas e os insultos se materializem no palco em registro equilibrado, sem que haja necessidade de adensá-los artificialmente. Despido de acessórios supérfluos e ações prolixas, o espetáculo procura valorizar a riqueza original do texto e dispensa a vaidade da assinatura autoral. A direção reitera a leitura do dramaturgo, que preferiu priorizar mais o embate masculino entre George e Nick, posicionando-os em maior pé de igualdade. Há momentos em que eles permanecem sozinhos em cena, enquanto Marta e Mel estão fora do ambiente – o público não tem acesso aos diálogos travados entre elas. Se esta valsa infernal pressupõe uma atmosfera claustrofóbica, ainda mais por ocorrer no espaço de uma sala de estar, a montagem desembrulha e amplifica a compreensão da peça com o uso de um palco giratório. No metafórico cenário de dois planos de Gringo Cardia, o movimento circular dos eixos serve não só para realçar estados emocionais como reverberar as metamorfoses comportamentais que permeiam toda a ação.  

Trata-se de um trabalho que exige concentração intensa do elenco, que precisa transitar por caminhos e atalhos cheios de variantes sentimentais sem se enlamear por exorbitâncias dramáticas. Zezé Polessa toma o cuidado de não transformar Marta em uma simples megera sem nuances. Ela irradia simetria na composição de uma mulher sarcástica, ressentida e sensual, que nutre prazer em humilhar o marido, a quem julga um homem fracassado. Na pele do amargo Jorge, o ator Daniel Dantas alavanca sutilezas e meios tons ao engendrar uma figura tão vulnerável quanto corrosiva e abjeta, despedaçada por não ter conseguido alcançar o topo da carreira. Os dois intérpretes entregam performances sofisticadas como um casal que passa o tempo inteiro alternando na função de algoz e vítima e que, no desfecho, revela diabólica cumplicidade.   

Em desempenho seguro, Erom Cordeiro evidencia em Nick a personalidade perturbada alojada sob a capa de bom sujeito. Ansioso por subir na carreira, o novato professor tenta se desvencilhar das investidas predatórias de Marta ao mesmo tempo em que envereda por dilacerantes embates com o anfitrião. Ana Kutner deslancha vigor ao dar vida a Mel, jovem espiritualmente tola que aos poucos, mesmo embriagada, deixa entrever ímpetos de um temperamento manipulador. Submetidos às convenções e regras de um matrimônio burguês, Nick e Mel serão devorados pelo casal mais velho e sairão definitivamente desfigurados.   

O texto formata uma guerra psicológica cheia de feridas não cicatrizadas e surpresas incômodas. Escorado nesses casais em processo de desilusão, o autor tece uma dolorida radiografia de seres com imensas dificuldades em lidar com suas existências decepcionantes. A cena final do espetáculo, com a eclosão da mais grave ilusão até então guardada, sinaliza que alguma coisa não funciona bem no mundo de hoje. Na visão de Albee, o matrimônio é o ponto nevrálgico de uma sociedade que insiste viver como uma bomba-relógio.

 (Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto João Caldas)

 

Avaliação: Ótimo

 

Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?

Texto: Edward Albee

Direção: Victor Garcia Peralta

Estreou: 25/04/2014

Elenco: Daniel Dantas, Zezé Polessa, Ana Kutner e Erom Cordeiro.

Teatro Raul Cortez (Rua Dr. Plínio Barreto, 285, Bela Vista. Fone: 3254-1631). Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 60 a R$ 90. Até 27 de julho.

 

Veja cenas do espetáculo:

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