EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Vísceras, Piu-Piu, histórias e sombras

Uma vaca cortada ao meio, um personagem de animação com a língua para fora, vídeos cujos nomes fazem referência ao músculo que controla o movimento dos testículos. O olhar estético acomodado poderá sofrer um sobressalto ao se deparar com a produção subversiva de 51 artistas contemporâneos que participam da exposição Em Nome dos Artistas, em comemoração aos 60 anos da Bienal de São Paulo. A complexidade dos trabalhos reunidos exige do público uma atitude mais atrevida, um tempo de observação e apreciação mais duradouros porque nem todos são de gosto fácil.

Em sua maioria norte-americana, as obras pertencem à coleção Astrup Fearnley Museum of Modern Art, sediada em Oslo, capital da Noruega. A curadoria da mostra, que leva a assinatura de Gunnar B. Kvaran, diretor da referida instituição, relacionou as obras de arte que exigem maior contemplação com as águas profundas. São aquelas que permitem imergir em situações desconhecidas, ao contrário das águas rasas, que nos possibilitam ver apenas as superfícies. A exposição, nesse sentido, é um convite às águas profundas e, para melhor entendê-la, é importante compreender os quatro momentos que a divide - 1980, 1990, a partir de 2000 e uma sessão especial ao artista britânico Damien Hirst (1965).

A aventura começa justamente por Hirst, um dos nomes mais lendários da atualidade. Sua produção fala sobre a morte e, para abordá-la, ele utiliza a própria morte. Em uma de suas obras, Mother and Child Divided (1993) (foto ao lado), uma vaca e um bezerro aparecem mortos, cortados ao meio e expostos em tanques de formol com as vísceras aparentes. É polêmico e seus trabalhos já levantaram diversos debates éticos. O filósofo e crítico norte-americano Arthur Danto lança a pergunta incômoda: o melhor destino desses animais seria acabar servindo como obra de arte no lugar da previsível mesa de jantar?

Hirst tem se utilizado da farmacognosia para discursar sobre o fim da existência. Os fármacos estão entre a morte e a cura. É no desejo de viver bem, de estar curado que as pessoas recorrem indiscriminadamente aos medicamentos - e a indústria farmacêutica explora isso. I Feel Love (1994-1995) é um quadro composto por bolinhas organizadas em linhas e colunas sobre um fundo branco. Cada uma exibe um tom diferenciado e não há repetições. Elas fazem alusão aos comprimidos, dispostos na cartela de maneira precisa. É como se o próprio quadro acenasse ao espectador a possibilidade da cura, de fazê-lo sentir-se bem. O título da obra não é por acaso.

Os artistas norte-americanos que representam os anos 1980 fizeram parte da geração pós-Segunda Guerra Mundial. Eles viveram o momento do hiper nacionalismo americano, quando a indústria cultural se expandiu para além dos territórios de língua inglesa. Como a função social da arte não é só ratificar a estrutura de poder, mas, entre outras intenções, denunciar e subverter um sistema de dominação, os artistas daquele tempo se valeram de objetos industriais descartáveis, imagens estereotipadas pela mídia para criar uma linguagem irônica e debochada do contingente sociocultural da época. Jeff Koons (1955) e Cindy Sherman (1954) (foto ao lado) são dois exemplos que ilustram esse período.

Macaco kitsch. A linguagem cínica e de forte humor ácido pode ser visto nos trabalhos do artista da Pensilvânia, Jeff Koons. Polêmico, ele se apropria de objetos kitsch, banais e clichês para falar de sexualidade, iconoclastia e consumo das classes sociais. A partir de referências do ready-made de Duchamp e da arte pop, ele se vale de peças que se encontram em lojas populares, de fácil consumo, bem distintos das tradicionais Belas Artes. São artigos engraçadinhos, que trazem consigo valores emotivos que cativam o público e, por outro lado, revoltam muitos daqueles treinados para a chamada “arte elevada”. Koons acredita que todo mundo deve ser autêntico com o seu gosto. Um objeto kitsch de um macaco pode ter mais a ver com a pessoa do que uma madona de Rafael. O crítico Danto disse que a ideia desse artista é “ser você e não fingir ser alguém que você acredita ser superior a você”. Nessa lógica, Koons toma conta de imagens do senso comum e da cultura de massa para construir imagens subversivas.

Em Titi (2009) (foto ao lado), o personagem de animação Piu-Piu é exposto como um boneco inflável, de maneira quase que patética, com olhos arregalados, braços abertos e com a língua para fora. Ainda nessa linguagem, o quadro The Hook (2003) possui um aglomerado de bonecos infláveis, de cores vivas, simbolizando animais fofos. Ao fundo percebe-se uma tela que enclausura esses animais. A figura de um gancho vermelho segura um dos bichos. No centro do quadro, em primeiro plano, há um short dourado, feminino, extremamente curto, ornamentado com joias na cintura. Duas correntes estão penduradas ao lado esquerdo da peça. Nesse conjunto apresentado, o short ganha forma de uma barca e seu aspecto de pirataria é reforçado com o gancho e as joias. O quadro nos permite uma associação com o universo da Terra do Nunca de Peter Pan, ameaçado constantemente pelo capitão Gancho. Mas nesses simbolismos de fantasia e clichês, onde está Peter Pan? Em um livre raciocínio, podemos dizer que está representado pelos bonecos infantis ameaçados pelo gancho e pela tela que os cercam.

Humor e horror. Cindy Sherman também mergulha nos estereótipos da cultura de massa, principalmente do cinema, para produzir um universo de estética popular e clichês. Na série Fotos de Cena Sem Título (1977-1980), ela se fotografou em diversos cenários a partir de variados gêneros de filmes. As fotografias de Sherman são impregnadas de significados sociais, culturais e políticos, especialmente voltados ao papel da mulher na sociedade contemporânea. Posteriormente, ela bebeu de estilos da pintura europeia (Retratos Históricos, 1988-90) para reconstruir esses cenários carregados de sentidos históricos, seja pelos ícones construídos ou pelos conceitos gerados pelas imagens.

As celebridades hollywoodianas são representadas na série Hollywood Portraits (2000-2002). Nesses retratos existe uma síntese entre glamour e sensação de repulsa causada pela maneira como a artista representa os artistas. Na série Clowns (2003-2004) (foto ao lado), ela lança mão de rigorosos makeups, costumes flamboyant e da pós-produção digital para manipular formas e cores sintéticas dos backgrounds das fotografias. Nos retratos dos palhaços há um jogo entre humor e horror, felicidade e tristeza.

A década de 1990 foi um período em que muitos artistas tornaram-se contadores de histórias. Eles criaram narrativas conceituais ou metafóricas que subvertiam as histórias convencionais. Para isso, mesclaram os vários gêneros das artes visuais, como a performance, a instalação e a videoarte. Um dos nomes mais consagrados desse período foi Matthew Barney (1967). Além de curiosidades que o cercam, como o fato de ser casado com a cantora Björk, ele é um atleta. A formação em Educação Física foi fundamental em sua obra.

Ciclo Cremaster (1994-2002) (foto ao lado), por exemplo, tem uma narrativa em torno da corporeidade. Cremaster é o nome anatômico do músculo que controla a movimentação dos testículos. A obra é composta por cinco vídeos que fazem alusão conceitual a esse músculo associado às questões humanas – sexualidade, gênero, ambição, fantasia, morte. As histórias não se fecham em uma narrativa linear com um final determinado. Elas foram estruturadas de tal maneira que permitem interpretações livres por parte do espectador.

Silêncio e paciência. A partir de 2000, ficou previsível esperar que as obras de arte empregassem elementos digitais e a interatividade como recursos principais na constituição da linguagem plástica. Muitos artistas contemporâneos fazem uso desses procedimentos, mas nem todos os consideram como elementos principais de suas obras. O trabalho de sombras do artista chinês Paul Chan (1973), como a série The 7 Lights (2005) (foto abaixo), não deixa de lembrar a técnica milenar do teatro de sombra de seus conterrâneos. Ele as projeta em movimento para falar do tempo. Não apenas do tempo grego cronos, responsável pela medição do horário, mas o de outro tempo grego, o do kairos, o preenchimento do tempo vazio, o que ele guarda de significados e pode transformar o estado atual para outro distinto. O percurso silencioso das sombras instiga uma contemplação para além do visível. Elas em si são indicativos da presença de algo e, na ausência desse algo, se tornam mais fortes que o próprio objeto.

O psicólogo Jung já nos disse, em seus profundos estudos sobre a natureza e a psique humanas, que o que escapa a nossa mente, o destino nos devolve em forma de sombra. Será que é por isso que vivemos em um mundo cada vez mais de projeção e simulacros? As sombras de Chan não são estáticas, elas têm movimento, tecem a síntese entre o cronos e o kairos, do tempo percorrido e da plenitude de sua ocupação. A delicadeza da obra desse ilustre chinês nos remete à condição do silêncio e da paciência orientais. Há um estado introspectivo de meditação sobre o tempo. Como diria o filósofo e poeta francês Gaston Bachelard, o tempo das águas profundas.

(Ivan Ferrer – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. / @ivanfm1)

(Foto de abertura: The Hook, obra de Jeff Koons)

 

Em Nome dos Artistas. Parque Ibirapuera (Avenida Pedro Álvares Cabral, s/número, portão 3. Fone: 5576-7600). Segunda a quarta e sexta a domingo, 09h às 19h; quinta, 9h às 22h. Ingresso: R$ 20 (domingo: grátis). Até 04 de dezembro.

 

Veja vídeo de Matthew Barney:

 

 

 

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