EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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O urubu e o corvo

Na obra do artista carioca Oswaldo Goeldi (1895-1961), o mundo que emerge de seus traços oferece uma visão trágica e miserável da condição humana. Trata-se de um retrato avesso da realidade, que encontra eco, por exemplo, no universo extraordinário do escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), autor de O Corvo. Um dos trechos desse aclamado conto serve à perfeição para descrever a natureza sombria das gravuras e desenhos de Goeldi: “A porta escancaro, acho a noite somente. Somente a noite, e nada mais. Com longo olhar escruto a sombra, que me amedronta, que me assombra”. Com curadoria de Paulo Venâncio Filho, a retrospectiva Oswaldo Goeldi: Sombria Luz, em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo, reúne mais de duzentos trabalhos, muitos inéditos ou raramente vistos, desse mestre expressionista de vida reclusa, que não gostava de ser fotografado nem aparecer em público. A mostra abriga ainda uma sala que reproduz o seu atelier no Leblon, com objetos pessoais, cartas, fotografias e uma prensa.

Goeldi transitava na contramão do tropicalismo ufanista defendido pelos contemporâneos modernistas brasileiros. Ao invés de explorar o exotismo e a paisagem colorida tupiniquins, suas xilogravuras e os desenhos a lápis, nanquim ou a carvão retratam as ruas, casarões, caveiras, peixes, cães, gatos, guarda-chuvas, bicicletas e os transeuntes do Rio de Janeiro pelo ângulo da melancolia e da escuridão, típico cenário assustador de Poe. Além da estética lúgubre de ambas as obras, é possível estabelecer outras associações entre eles. Os dois, por exemplo, mantém uma relação forte com aves mórbidas e agourentas. Para Poe, o corvo. Para Goeldi, o urubu. Muitas vezes, tanto um quanto o outro lançam mão do suporte fantástico para representar uma realidade adversa à cordialidade dos moradores da época.

O artista brasileiro chegou a afirmar que o que lhe interessava “eram os aspectos estranhos do Rio suburbano, do Caju, com postes de luz enterrados até a metade na areia, urubu na rua, móveis na calçada, enfim coisas que deixariam besta qualquer europeu recém-chegado. Depois descobri os pescadores e toda madrugada ia para o mercado ver o desembarque do peixe e desenhava sem parar”. Seu mundo, por sinal, não é exclusivamente negro. A cor irá entrar em um determinado momento, utilizando-se de poucos tons, principalmente o vermelho. O recurso funciona para aumentar o destaque ou a significância de algum elemento representado na obra.

Olhos do demônio. Observemos a obra-prima Chuva (1957) (foto de abertura), xilogravura colorida sobre papel japonês. A chuva em si não está em evidência, o que a torna presente é o guarda-chuva em vermelho carregado pelo pedestre solitário que caminha pela via escura e incerta. O tom azul também foi utilizado e contribui para a ambientação chuvosa. O traçado seco e reto do artista põe em relevo a tensão e situações aflitivas, mesmo que no silêncio da noite. A mesma técnica é empregada em Rua Molhada (foto à esquerda), que registra com linhas nervosas imagens de objetos e animais soltos na rua úmida. Não há sol. Não há presença humana, apenas indícios de descasos em relação aos objetos abandonados. Mais ao fundo, em um aparente poste, há um rasgo de cor vermelha perturbador.

A profunda solidão em Goeldi existe até mesmo com a presença de seres. Em uma ilustração sem título (foto à direita), de impacto terrível, o que vemos é a personificação da morte que caminha ao lado da silhueta de um corpo caído ao chão. A profundidade de campo e o contraste do claro e escuro reforçam o isolamento e o sombrio presentes na obra. As palavras de Poe cabem muito bem aqui: “E seus olhos têm toda a dor dos olhos de um demônio que sonha; e a luz da lâmpada que o ilumina, projeta a sua sombra sobre o chão. E minh'alma, daquela sombra que jaz a flutuar no chão, levantar-se-á - nunca mais!”

Não menos desconfortável, em Guerra (1942) um corpo emerge da superfície em situação dramática. A luz de baixo para cima tonifica a expressividade do sujeito que está de costas para os soldados ao fundo. A densidade da ação obriga o observador a     sentir o peso da narrativa conturbadora. A Sonâmbula se encontra em um ambiente escuro, estática, com olhar lateral. A luz em seu corpo contrasta com a obscuridade do local e com o estranho casal na contra luz. No silêncio angustiante, a voz abafada pela escuridão ganha alívio e respiro nos finos sulcos de luz branca e rasgos de cores. Mas não é o suficiente. Tudo está imóvel. O despertar talvez ocorra “nunca mais”, conforme as palavras constantemente pronunciadas pelo corvo de Allan Poe.

(Ivan Ferrer Maia (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )                                                                               

(Foto inicial: Chuva / Divulgação)

 

Oswaldo Goeldi: Sombria Luz

MAM Ibirapuera (Avenida Pedro Álvares Cabral, portão 3, Parque Ibirapuera. Fone: 5085-1300). Terça a domingo, 10h às 17h30. Ingresso: R$ 5,50. Estreou: 15/06/2012. Até 19/08/2012

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