EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Sax na Paulista

Ele já andou com guerrilheiros na Colômbia, treinou nas selvas como soldado do Exército brasileiro, foi professor particular de flauta e hoje toca saxofone nas ruas paulistanas. De temperamento calmo e afável, bate ponto toda terça-feira na calçada em frente ao Conjunto Nacional, tradicional condomínio na esquina da Avenida Paulista com a Rua Augusta. Em meio ao público que se aglomera no local para apreciar sua arte, ele desembrulha repertório baseado em jazz, música clássica e MPB. Ao fim da performance, alguns espectadores, com entusiasmo visível, depositam notas de dois, cinco e até dez reais na caixa que guarda o instrumento e é deixada estrategicamente aberta sobre o chão. Outros puxam papo ou o cumprimentam.

É assim, há mais de duas décadas, que o saxofonista e flautista Emerson Pinzindim, 49 anos, ganha seu sustento. O sobrenome, aliás, é uma homenagem a Alfredo da Rocha Viana Filho, o Pixinguinha (1897-1973), considerado um dos maiores compositores da música popular brasileira, autor dos clássicos chorinhos Carinhoso e Lamentos. Se não tem o singular talento do mestre inspirador, o que não é demérito algum, nesse caso, Pinzindim transpira paixão pelo ofício e demonstra virtuosismo na execução do sax e da flauta.  

Sua vida poderia render um bom livro de aventuras. Aos nove anos, no colégio onde estudava, aprendeu corneta de fanfarra e não parou mais. Foi amor à primeira vista, quase interrompido não fosse uma atitude atrevida que assumiu às vésperas de cumprir o serviço militar obrigatório. Por uma questão ideológica, ele simplesmente comunicou à sua mãe que desistira de se alistar. “Na época, plena ditadura militar no País, ou se era de esquerda ou de direita e o Exército partilhava da segunda opção, além de ser elitista e racista”, justifica. Como não vislumbrava alcançar o posto de general por acreditar na discriminação contra pretos e pobres, pediu para que sua mãe providenciasse um passaporte. Havia decidido peregrinar pela América do Sul.

Com documento em mãos, apanhou uma mochila, acomodou as roupas e duas flautas e embarcou no mítico Trem da Morte. A rota, de 640 quilômetros, liga o vilarejo boliviano de Puerto Quijarro, na divisa com Corumbá (MS), à cidade de Santa Cruz de la Sierra, no centro da Bolívia. Até hoje Pinzindim se lembra dos percalços que vivenciou ao longo das extenuantes dezoito horas de viagem. O trem passou por diversos trechos perigosos, balançou em pontes precárias e não poucas vezes descarrilou. “Eu via de tudo nos vagões: cabrito, galinha, vaca, tartaruga, traficantes, cocaína, gente esquisita”, diverte-se hoje. “Muitos eram sacoleiros vizinhos que voltavam das compras no Brasil. Na Colômbia, o papel higiênico era brasileiro.”

Tiros na praça. Nos países que visitou, Pinzindim sobrevivia executando flauta doce – a transversal havia sido furtada ainda em solo brasileiro – e vendendo artesanato. Ambas as atividades na rua. A rica experiência, especialmente a de mostrar o seu talento musical para nacionalidades distintas, o marcou profundamente. Notou que a música, exercitada livremente em espaços públicos, podia funcionar como instrumento político, uma arte transformadora. No Peru, por exemplo, conheceu mineiros que interpretavam cancioneiro andino no caminho para o trabalho. “Eles se reuniam em grupos para tocar, dentro dos ônibus, e os passageiros retribuíam com moedas.”

Nessas viagens, Pinzindim descobriu que ter nascido no Brasil era um poderoso cartão de visitas. “Eles gostavam muito de brasileiros, percebi que dava prestígio e facilitava na hora de fazer amizades e se hospedar. Eu me sentia disputado”, ri. Com o glamour de falar português, abrigou-se em diversos tipos de lares, a maioria de famílias simples, e chegou a dormir em uma casa pertencente a jovens guerrilheiros. Certa noite, foi acordado às pressas e teve que fugir do local porque policiais baixariam ali em poucos minutos.

Pela primeira vez, sentiu na pele as agruras de quem atua na clandestinidade. Os tais guerrilheiros militavam no M19, movimento criado nos anos 1970 na Colômbia por jovens da classe média urbana. O núcleo que o hospedou havia seqüestrado um microônibus e o conduzira para a Universidade Nacional. Em determinada ocasião, a praça Che Guevara, ocupada pelos rebeldes, transformou-se em praça de guerra com o súbito desembarque da polícia nacional.

Ele estava no olho do furacão também. “Um policial gritou para a gente se abaixar e ameaçou meter bala em quem ficasse de pé. Eles chegaram agressivos, manuseando as metralhadoras assim”, explica, imitando a ação com a flauta transversal. “Nunca tinha presenciado um combate de perto. Vi gente levando tiro, arremessando bomba. Uns 250 policiais morreram nesse dia.”

Direito de tocar. Refeito do susto, retomou a romaria e foi explorar comunidades na cordilheira dos Andes. Já exausto da peregrinação por cinco países – ele gastou sola também pelo Equador, Bolívia e Venezuela -, retornou ao Brasil pela Guiana, situada ao norte. Com 21 anos, trazia na bagagem o aprendizado da língua espanhola, a sabedoria da rua, a sensação de que sua vida esteve por um fio no episódio do confronto entre guerrilheiros e policiais.  

No Maranhão, ingressou no Exército na expectativa de tocar flauta na banda militar. Ledo engano. Acabou deslocado para a selva, ocupando o seu tempo em treinamentos para combate de guerrilhas urbanas. Expulso da unidade por incompatibilidade entre o que queria e o que foi oferecido, começou a trabalhar na Polícia Militar e, na sequência, como segurança de uma companhia, já em São Paulo – nesse último emprego, chegou a levar tiros durante uma tentativa de assalto.

A retomada da trajetória musical se deu quando viu uma flauta sobre a mesa da gerente de uma empresa, sediada na Avenida Angélica. O instrumento era um presente de aniversário dela para a filha. Com a maior cara de pau do mundo, pediu para tirar um som. Não deu outra. Na semana seguinte, virou professor de música na escola da menina. Mas, apesar da boa remuneração, não tinha tempo para tocar e pediu demissão. Preferiu estudar em casa.

Como a situação financeira apertou, decidiu mostrar o seu dom no vão livre do MASP – Museu de Arte de São Paulo. O início foi difícil, ganhava quase nada, pensou em desistir, mas aos poucos dominou o jogo e passou a ser reconhecido. Dali para a passagem subterrânea da Rua da Consolação e a galeria interna do Conjunto Nacional, a poucos metros da entrada da Livraria Cultura, foi um pulinho. Hoje está estabelecido na porta do Conjunto Nacional e em outros pontos da capital paulista com bom fluxo de pedestres.

Nos últimos tempos, Pinzindim se engajou na luta pelos direitos de quem desfruta de logradouros públicos para apresentar a sua obra. No ano passado, criou a Associação dos Artistas de Rua e levou à Câmara Municipal de São Paulo um projeto de lei que permite aos músicos comercializarem seus CDs na rua. O texto já passou por todas as comissões e seguirá os trâmites previstos na casa. Com dois álbuns gravados, Pinzindim não pode expor e vender o seu trabalho na calçada. “Se aprovada, a lei vai garantir mais uma fonte de renda para uma classe que atua à margem do mercado formal”, assinala. Afinal, ninguém vive só de romantismo e idealismo, mesmo na rua.     

­­­­­­­­­­­­­­Texto e fotos de Karin Salomão (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

Aluna de Jornalismo da USP e participante do projeto Projeto Repórter do Futuro

 

 

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