EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

  • Font size:
  • Decrease
  • Reset
  • Increase

Teatro: A Senhora de Dubuque

A peça começa com um jogo em que os personagens se perguntam quem eu sou e quem é você. Logo se percebe que essa brincadeira de perguntas e adivinhações não passa de uma aborrecida disputa emocional que, com efeitos diversos, funcionará como questão-chave ao longo da montagem. Claro, eles beberam um pouco e os nervos estão à flor da pele. Há uma tensão perturbadora no ar. Na verdade, o clima artificialmente festivo do jogo funciona para distrair o grupo para o fato de que a anfitriã, Jo, está morrendo de doença incurável à vista de todos. A sala de estar onde transcorre a ação, com uma escada aberta que leva para o nível superior, está povoada desses tipos irritantes e cruéis, sem qualquer faísca de humanidade – uma das cenas mais incômodas acontece quando Jo tem uma crise aguda, estrebucha no chão e todos se limitam a observá-la sem esboçar qualquer reação. Trata-se de uma peça de Edward Albee, o dramaturgo americano que tem o hábito de desmascarar, em seus textos, as perversidades humanas, o gosto pela colisão verbal e iluminar a crise ética da sociedade atual. A anfitriã está morrendo e enquanto a noite avança ela sofre ataques cada vez mais intensos de dor. Como é possível imaginar, é uma mulher colhida por rancores e disposta a borrifar insultos sobre os outros, ridicularizando-os. Definitivamente ela, o preconceituoso marido Sam (Joaquim Lopes) e os demais não estão se divertindo como querem transparecer. Simplesmente vestem máscaras. Há um momento em que uma personagem, num espasmo de lucidez, assume claramente a fantasia. Os convidados incluem o grosseiro Fred (Sérgio Guizé) e sua namorada tola Carol (Carolina Manica), além do oprimido Edgar (Luciano Gatti) e sua frágil esposa Lucinda (Patrícia Pichamone) – esta chega a se descontrolar e o marido, num primor de maldade e alheamento, iguala o surto temporário dela com o martírio de Jo.

Na encenação vigorosa, reverente e plasticamente bela de Leonardo Medeiros, o enganoso registro naturalista é solenemente corrompido quando os personagens quebram a quarta parede e se dirigem aos espectadores. A direção teve o cuidado de preservar o equilíbrio entre as duas realidades, a do palco e a da relação daquelas pessoas com a platéia. No meio do espetáculo ainda vão surgir dois personagens do nada para interferir na história, deixando no ar uma dúvida sobre sua origem, a identidade e função. São aquelas figuras que alteram o curso dos eventos e produzem vários significados. Albee parece flertar com o teatro de Pirandello, que transformava os homens em pobres marionetes nas mãos do destino, e Beckett, que radiografava a realidade como se fosse algo irreal. Em A Peça Sobre o Bebê, Albee expunha um casal jovem que afirmava ter um bebê enquanto um casal mais velho tentava convencê-los de que nunca existira uma criança. A montagem se desdobra em duas partes, diferentes em intenção e conteúdo. Durante o primeiro ato, que remete ao clima tenso e neurotizado de Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, do mesmo autor, os personagens estão com seus sentidos mais afiados ou naturalmente se revelam mais torpes. A cena final, já sem os convidados, flagra o casal antes de dormir desnudando suas inseguranças e temores diante do quadro irreversível. O segundo abre com a chegada repentina e inesperada de uma dupla misteriosa. Ela é a enigmática e tranqüila Elizabeth (Karin Rodrigues), a tal senhora do título, que se apresenta como mãe de Jo. Ele é Oscar (Edson Montenegro), um homem negro vaidoso, de espírito enciclopédico, falas agudas e domínio de artes marciais.

Aturdido, Sam não acredita que aquela mulher possa ser sua sogra porque a descrição física e a história de vida não correspondem – ele é tão refratário à idéia que precisa ser imobilizado para não interferir no desenrolar da situação. Os amigos, que sob vários pretextos retornaram na manhã seguinte, se entregam com mais facilidade à novidade. Ou seja, o que deveriam ver como chocante é registrado como uma surpresa. Até Jo se aninha nos braços da suposta mãe. Fica claro aos espectadores que Elizabeth é uma espécie de Anjo da Morte. A descoberta, no entanto, pouco importa. Isso porque o dramaturgo está mais interessado em propor outro tipo de exercício ao público. Albee tece uma instigante reflexão sobre até que ponto o homem se cerca de ações triviais, como o ato de fazer compras no shopping ou se desconectar nas baladas, para não ter de enfrentar verdades inconvenientes sobre a vida e a morte, perdas e danos, dores e sofrimentos. O elenco dimensiona a discussão com bons desempenhos. Karin Rodrigues combina ironia e compaixão no desenho de uma personagem talhada a confortar moribundos. Alessandra Negrini, como Jo, exibe a repulsiva sinceridade dos doentes terminais, que será atenuada a partir da aceitação do seu destino. No cuidadoso desempenho de Joaquim Lopes, Sam também irá provar uma curva em sua atitude. Os demais compõem com eficientes e vibrantes interpretações estes personagens que exercitam sarcasmo, vulgaridade e preconceito e circulam pelo palco expelindo graus variados de pobreza de espírito – incrível como a cor da pele de Oscar desperta um racismo inato, revertido em tiradas espirituosas pela dupla forasteira. É uma montagem afiada de uma peça que cabe bem como metáfora de uma civilização que se canibaliza. O espectador se olha no espelho e o que vê não é nada agradável.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto: Carol Sachs)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Senhora de Dubuque

Texto: Edward Albee

Direção: Leonardo Medeiros

Elenco: Karin Rodrigues, Alessandra Negrini, Sérgio Guizé e outros

Estreou: 29/01/2011

Tuca (Rua Monte Alegre, 1.024, Perdizes. Fone: 4003-1212). Sexta e sábado, 21h30; domingo, 18h. Ingresso: R$ 40. Até 1 de maio.

Comente este artigo!

Modo de visualização:

Style Sitting

Fonts

Layouts

Direction

Template Widths

px  %

px  %