EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: A Última Sessão de Freud

Existe Deus? Num período em que a Europa tinha razões de sobra para questioná-lo, a controvérsia pontuou a conversa entre o psicanalista Freud e o escritor irlandês C.S. Lewis em setembro de 1939, mas não foi solucionada. Inspirada no livro Deus em Questão, do psiquiatra americano Armand M. Nicholi Jr, a peça do dramaturgo americano Mark St. Germain põe em contraste a filosofia racionalista do pai da psicanálise, para quem a crença no criador não passava de uma fantasia infantil, e a ótica mais espiritual do autor da série literária As Crônicas de Nárnia, recém convertido ao cristianismo. O instigante texto, que ganhou montagem à altura assinada por Elias Andreato, discute questões como ciência e fé, amor e sexo, Deus e o diabo, ressentimentos e o sentido da vida. 

O encontro fictício entre estes pensadores do século passado transcorre no gabinete inglês de Freud pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial. A perspectiva de Hitler despejar bombas sobre suas cabeças a qualquer minuto é aterrorizante para o refugiado judeu de 83 anos, imolado por um doloroso câncer na boca, que fugiu da Viena natal ocupada por nazistas e aterrissou na Inglaterra acompanhado de esposa e filha. Não é menos assustador também para o veterano da Primeira Guerra Mundial, hoje na faixa dos quarenta anos, que chegou atrasado ao compromisso porque os trens operavam para desocupar escolas e hospitais antes dos esperados bombardeios aéreos.

O psicanalista não está incomodado com o atrevimento de Lewis, que em sua última obra literária o retratou de forma satírica. O que o anda irritando é o fato de o convidado, sem mais nem menos, ter deixado de ser um descrente ardoroso e virado um cristão de primeira hora, uma metamorfose que considera inaceitável. Como afirma no início, ele quer aprender como alguém da sua inteligência pode “abandonar a verdade por uma mentira insidiosa.” 

Logo se nota que a peça oferece pouca ação física e privilegia o confronto do pensamento religioso versus pensamento científico, rinha verbal eventualmente interrompida por telefonemas, surtos de agonia oral do analista e o noticiário cada vez mais preocupante sobre a iminência do conflito bélico - os boletins da rádio fornecem uma tensão velada que, à parte o preparo intelectual, expõem a vulnerabilidade emocional dessas duas figuras históricas.

O diretor Elias Andreato areja a encenação com uma cadência elegante e equilibrada. Instaura uma teatralidade vibrante ao valorizar as interpretações e o pingue-pongue de ideias e pontos de vista discordantes. Demarcada por estantes de livros, o famoso sofá-divã e uma vitrine de estatuetas religiosas de civilizações antigas, o escritório cenográfico, concebido por Fábio Namatame, traduz um ambiente onde o fascínio pelo conhecimento se revela enraizado.  

Odilon Wagner (Freud) e Claudio Fontana (Lewis) captam a ferocidade cerebral desses homens em desacordo e esculpem uma dinâmica que adiciona texturas ao trabalho. Wagner é magistral ao transmitir a sinceridade, a índole irascível, o comportamento professoral e a discreta soberba do psicanalista debilitado, surpreendentemente disposto a acabar com sua própria vida. Em instante algum o ator beira a caricatura. Com uma tarefa menos complicada, porque Lewis é mais conhecido por sua literatura do que por sua personalidade, Fontana explora de maneira capilar a tensão e a inquietação de seu personagem. Em determinadas passagens, como quando dispara o alarme de uma sirene de ataque aéreo, o escritor sugere sentir as consequências de sua participação no campo de batalha na Primeira Guerra Mundial. Em outras, se mostra generoso e compassivo ao se preocupar com a avançada doença do médico.

Ancorados em comentários cheios de sarcasmo, opiniões inabaláveis e egos inflados, Freud e Lewis são determinados a ter a última palavra e parecem minimamente propensos a repensar sua visão de mundo. Um tenta injetar dúvidas na convicção do outro e ocasionalmente se percebem sitiados, embora sem nutrir a sensação de derrota. O espectador atento vislumbra que a disputa ideológica está fadada a não ter um vencedor. O espetáculo, aliás, outorga peso igual a ambos os lados da discussão. “Amar o próximo? Dar a outra face? Com Hitler?”, provoca Freud. “Foram os homens, não Deus, não Lúcifer, que criaram prisões, escravidão, bombas”, retruca Lewis. “Se existe um Deus e ele é um Deus bom, como tal sofrimento poderia fazer parte do seu plano?”, alfineta o anfitrião. “Deus quer nos aperfeiçoar através do sofrimento”, afiança o visitante.  

A peculiar relação de Freud com a filha e o romance pouco convencional de Lewis com a mãe de seu melhor amigo também contaminam a reunião. Os dois se intrometem ainda na vida privada do outro e identificam graus de repressão. “Estamos conversando há um bom tempo e esta é a primeira vez que você menciona sexo”, Lewis caçoa, numa óbvia alusão à ênfase da psicanálise em desejos ocultos. É relevante constatar como eles conseguem manter um diálogo fértil e acalorado sem perder a noção de respeito mútuo. Uma cordialidade que caiu em desuso nos dias atuais em que dogmas e certezas absolutas dividem a sociedade em tribos fechadas em si.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto João Caldas)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Última Sessão de Freud

Texto: Mark St. Germain

Direção: Elias Andreato

Elenco: Claudio Fontana e Odilon Wagner

Estreou: 03/03/2022

Teatro Porto (Rua Barão de Piracicaba, 740, Campos Elíseos). Sexta, 20h; sábado, 17h e 20h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 50 a R$ 90. Em cartaz até 7 de agosto.

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