EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Araújo: "O BBB ensina a ser mau-caráter"

Sem meias palavras. Para o jornalista, professor e mestre em comunicação pela Universidade de Brasília, Washington Araújo, a atração exibida anualmente pela Rede Globo, agora em sua décima primeira edição, é a versão moderna de um zoológico, onde pessoas ficam trancafiadas em uma jaula com a aparência de casa. Em sua opinião, o sucesso financeiro e de marketing desse formato de programa é inversamente proporcional ao seu fracasso ético e de cidadania. “Trata-se de um show cruel e miserável, um desfile de corpos sarados em trajes sumários, de gente pouca afeita à atividade de pensar”, detona ele, autor de livros sobre mídia, direitos humanos e ética.

Araújo assinala que, de olho nos prêmios milionários, brothers e sisters se sujeitam a provas dignas de campos de concentração nazista, como botar ovo de hora em hora e coaxar vestido de sapo em intervalos regulares. “Eles se entregam a um verdadeiro vale-tudo, com direito a conluios e traições, simulações e dissimulações”, critica. “No fundo, são pobresseres humanos perdidos num mundo que exige da juventude bunda, músculo, peito e cabeça vazia.”

Nesta entrevista, feita por e-mail, Araújo discorre sobre um reality show que costuma ser, a cada temporada, alvo de centenas de denúncias contra preconceito, racismo, apelo sexual e violação à dignidade humana. Mesmo em rota descendente de público, patinando na média atual de 25.7 de audiência, o programa continua em sua jornada de estragos éticos. Nem o apresentador Pedro Bial é poupado da veia ácida do entrevistado. “Acho lamentável que um jornalista de seu porte, que já cobriu a queda do Muro de Berlim, tenha se apequenado dessa forma.”  

 

Edgar Olimpio de Souza

 

A versão 2011 do BBB não tem a audiência poderosa de edições passadas, o que anda incomodando a direção da Rede Globo. Ainda assim, por que o programa atrai milhões  de espectadores                                                    

As pessoas guardam consigo alta dosagem de voyeurismo, curiosidade sobre a intimidade dos outros. Em alguns casos assume forma de doença. O BBB, nesse sentido, é aquele buraco da fechadura em que vemos os corpos e os pensamentos, as virtudes e os vícios das pessoas, uma vez que ao longo de 24 horas o espectador pode ver e ouvir cada um dos participantes da casa. É a versão moderna de um zoológico. Em vez de observarmos animais, observamos do que são capazes semelhantes nossos trancafiados em uma jaula com aparência de casa.

Nos outros países, os realities shows já entraram em decadência?                                             

Nos países do chamado Primeiro Mundo, o conceito de cidadania é muito nítido, se faz presente na sociedade e nas relações interpessoais e institucionais. Cidadãos esclarecidos, com bom nível cultural, tendem a aproveitar o tempo, seu bem mais precioso, da melhor forma possível. Portanto, não surpreende o fato de que formatos como o Big Brother tendam a reduzir a audiência. Inicialmente, o que eleva a audiência é o desejo de conhecer algo novo e também de satisfazer aquela porção de voyeurismo. Depois, as coisas voltam aos trilhos.

O BBB deveria ser encarado como um programa de entretenimento ou discutido segundo outros valores?                                                                                                                  

Não é um programa de entretenimento da forma tradicional, já que esse tipo de atração em nada eleva a condição humana. Ao contrário até: degrada-a. Trata-se de show cruel, nefando, sinistro e miserável. Não dá para ignorar que seja um produto financeiro, de marketing e de público vitorioso. Porém, um fracasso no campo da ética, da cidadania e do respeito aos direitos humanos fundamentais. O tempo todo é desperdiçado com conversas fiadas, futilidades, namoros, intrigas, ginástica, bebedeira, caras e bocas, atentados à língua portuguesa.

Pelo jeito, nada se salva...

É umdesfile de corpos sarados em trajes sumários, de gente pouco afeita à atividade de pensar. Aí, nos entretempos, os brothers e sisters se digladiam para eliminar uns aos outros. De olho nos prêmios milionários, eles promovem um verdadeiro vale-tudo: fazem alianças e conluios, traem, simulam, dissimulam. Agora inventaram a figura do sabotador, que precisar sabotar seus companheiros para se safar. É um exercício de mentiras e deslealdades. Um mau-caratismo explícito.

Em sua opinião, falta um olhar mais criterioso de quem produz televisão?                                                                                                                                                 

É incrível como uma aberração desse tipo encontra abrigo nas grades de programação da TV aberta. Chega a ser irônicoporque se trata de um meio de comunicação que depende de concessão do Poder Público. Por isso tinha que ser discutido à luz de valores humanos, objeto de estudo de psicólogos, psicanalistas, educadores em geral. O BBB em nada contribui e ainda realiza a proeza de despertar nas crianças e nos jovens o que há de pior na natureza humana: inveja, ciúme, preconceitos contra populações vulneráveis, grosserias, vocabulário quase sempre resvalando para o chulo.

Por que milhares de candidatos mandam vídeos, se oferecem para participar?                  

Vivemos em uma sociedade pós-moderna, onde nada é permanente e quase tudo se encaixa na categoria do descartável, do perecível. A sociedade endeusa a juventude, a sensualidade, a satisfação dos apetites do corpo. O prêmio financeiro seduz parcela expressiva dos inscritos, mas a possibilidade de ganho não se esgota com o fim do programa. Os participantes pensam nos lucros que poderão desfrutar depois. Como faturar cachês milionários posando como vieram ao mundo para revistas de circulação nacional, tipo Playboy e G Magazine.  

Sem contar a fama instantânea...                                

No fundo, são pobresseres humanos perdidos num mundo que exige da juventude bunda, músculo, peito e cabeça vazia. Estão aliatrás de um espaço na grande vitrine da vida, dos tais quinze minutinhos de fama como preconizado por Andy Warhol. Eles vivem um dilema: se tornar celebridade instantânea ou retornar ao anonimato. Ser celebridade, mesmo que por poucos dias, parece conceder um sentido à existência desses participantes. Simbolicamente, renunciar aos holofotes equivaleria à própria morte. Alguns até vingam, como a Sabrina Sato, hoje no Pânico.

É justo se criticar o Pedro Bial, profissional de carreira reconhecida, por emprestar o seu prestígio a esse tipo de atração?                                                 

Acho lamentável que um jornalista do porte e da bagagem cultural de Pedro Bial tenha se “apequenado” dessa forma ao aceitar conduzir diariamente o BBB. Alguém que em um dia de 1989 cobriu em Berlim a derrubada de seu vergonhoso muro deveria estar envolvido em missões mais importantes. Quem sabe, fazendo trabalhos realmente jornalísticos e não sendo comentarista de um programa cuja profundidade uma formiga de joelhos conseguiria atravessar incólume. Ele parece não perceber os prejuízos éticos e morais que irá carregar vida afora. Parece ter optado por ser um sacerdote, muito bem pago, destes tempos vis.

Ele cunhou jargões que se popularizaram como “meus heróis”, “meus ídolos”, “tripulantes da minha nave”...                                                                                                                                      

Além de idiotas, os jargões são despidos de qualquer significado real. Só servem para glamourizar vidas e mentes vazias, que se equilibram como podem em corpos sarados. São de um ridículo atroz. Em suas falas, o Pedro Bial mistura filosofia e superego, mito do herói e inconsciente coletivo, Brecht e Paulo Coelho, Renato Russo e Bob Dylan. Não disfarça seu encantamento com aqueles espécimes humanos. Ele sabe que jamais será contraditado ou contrariado pelos participantes. Por mais estúpidas que sejam as observações que faz.

As provas propostas aos participantes durante o confinamento são aceitáveis por se tratar de um jogo?                     

Eles se especializaram em degradar a condição humana. É mulher botando ovo de hora em hora, participante vestido de sapo pulando e coaxando em intervalos regulares, todos se fantasiando de frangos completamente depenados, gente acarinhando abacaxi como se fosse um recém-nascido. Com o intuito de testar a força física, a resistência dos confinados, em provas dignas de campos de concentração nazista. Como a de permanecer em pé por várias horas seguidas ou levar chuveiradas intercaladas com ondas de calor e de ventania. O formato favorece o circo de horrores. Se o público gosta de coisas mórbidas, terá um celeiro de crueldades à disposição.

Você acha que o roteiro do programa é imprevisível ou a produção interfere nele de alguma forma?                                                                                                                                                      

É tão previsível quanto sabermos que hoje e amanhã, cada um desses dias, terá nem mais nem menos que 24 horas. A imprevisibilidade é apenas uma ilusão que se vende aos incautos. O que vale mesmo é a realidade que se produz na mesa de edição. Ali se forjam os mocinhos e os bandidos, os éticos e os aéticos. A edição é a mola-mestra do programa, que será responsável por induzir o público a optar por esse ou aquele a sair da casa. Também acredito que existe manipulação por parte da emissora no processo de escolha de quem será eliminado. A opção é para que fiquem os que consigam despertar a empatia da maior parte da audiência.

Alguns sustentam que a realidade mostrada no noticiário é tão deplorável quanto à do BBB, da mesma forma que novelas e filmes também têm baixarias. Cabe esse tipo de comparação?    

Seria ingênuo desejarmos uma sociedade de ouro com indivíduos de chumbo. Como são programas distintos, não deveriam ser comparados de maneira tão direta. Uma coisa é uma emissora exibir vídeo de babás inescrupulosas e perversas constrangendo crianças de tenra idade ou divulgar vídeo de policial agredindo fisicamente um cadeirante. Infelizmente, este é o mundo em que vivemos. Um mundo em que os direitos humanos ainda não estão integrados, de maneira muito perceptível, à vida em sociedade. 

Não é curioso que até emissoras concorrentes repercutam o BBB?                                               

Faz parte do show business. No caso da Rede Globo, é inegável que suas “atrações” terminam por pautar em certa medida a grade das concorrentes. O BBB é fonte primária para o jornalismo de frivolidades, também conhecido como de entretenimento. Ele resgata o velho colunismo social dos jornais impressos. O Ministério Público deveria ser mais atuante, notificar as emissoras quando teimam em nivelar por baixo sua programação. E nada disso tem a ver com censura, mas apenas com bom senso e o legítimo exercício do Poder Público em zelar pelo bom uso de uma concessão pública, defendendo sempre os direitos e o bem-estar da sociedade como um todo.

Numa visão mais ampla, o BBB seria inofensivo porque dura apenas três meses?                                                       

Um programa com traições, ausência de lealdade, hipocrisia, falas descontextualizadas e preconceitos contra negros, pobres, homossexuais, lésbicas, ciganos, analfabetos e portadores de necessidades especiais, nunca poderia ser considerado “inofensivo”. Porque o formato foi feito para atrair audiência e com isso faturar muito dinheiro, bastante merchandising. É ofensivo à dignidade humana. Um atentado à criação de uma cultura que valoriza os direitos fundamentais da pessoa humana.

A influência do BBB persiste mesmo depois do fim da edição...                                            

Exatamente, porque inculca nos jovens – aqui incluo crianças e pré-jovens – valores distorcidos, a começar pelo famoso “vale tudo por dinheiro”. Reforça estereótipos cruéis contra segmentos sociais. É ofensivo também à inteligência: o que alguém aprende com o BBB? A ser mau caráter, possivelmente. A considerar que o objetivo da vida é expor-se como animal enjaulado à visitação pública.

Você não tem a impressão de que todo mundo assiste o programa, mesmo quem afirma o contrário?                                                                                                                                                 

A gentenem precisa assistir para saber tudo o que se passa. Basta estar vivo. É praticamente impossível escapar ao massacre que a indústria cultural impõe. Tudo é muito invasivo. As notícias circulam no jornal, no ônibus, no elevador, em todos os lugares. O BBB acaba sendo onipresente no nosso dia-a-dia.

O que poderia ser feito para impedir a existência dos realities shows?                                 

Bastaria aplicar a Constituição Federal do Brasil, a atual, de 1988. Ela é a nossa Constituição-Cidadã. Aplique-se o Estatuto da Criança e do Adolescente. Através do diálogo entre representantes do Poder Público e proprietários da emissora, poderia se chegar a um código mínimo de ética da programação levada ao ar em canal aberto. Advertências deveriam ser dadas de maneira mais amiúde. E a maior punição seria suspender publicidade governamental por trinta, sessenta, noventa dias em tal emissora.

Mexer no dinheiro costuma doer mais...                                

O coração de uma televisão é encontrado em seu bolso. Campanhas de organizações da sociedade civil deveriam ser colocadas em ação para vincular as empresas anunciantes do BBB com as baixarias protagonizadas no programa. Isso poderia ser feito de maneira clara, aberta, bem ao estilo do “quem financia a baixaria é contra a cidadania”. Estou falando de boicote a produtos dessas empresas. Existem formas de tratar do assunto sem apelar para o tentador e sempre perigoso conceito de usar a censura.

Programas de auditório como os do Faustão, Sílvio Santos e Gugu também vivem de competições, gincanas, provas de uns contra outros. Filosoficamente falando, não teriam a mesma natureza do BBB?                                                                                                                      

São bastante diferentes. Entre a cor preta e branca o olho humano pode distinguir 82 mil diferentes nuances de degradée. É injusto inseri-los no mesmo balaio. Este tipo de raciocínio apenas reforça a situação atual. Cada caso, um caso. Nem mais nem menos. 

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