EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: O Desaparecimento do Elefante

Nos cinco contos do escritor japonês Haruki Murakami, adaptados para o palco nesta montagem, a impressão é a de que tudo está fora de ordem nos tempos de hoje. Um sujeito se apaixona por alguém que não conhece, um casal decide assaltar uma lanchonete de madrugada, mas não quer dinheiro, um fulano recebe repentinamente telefonemas eróticos. Com linguagem clara e fluente, o autor radiografa personagens que têm suas rotinas desestabilizadas por estranhos acontecimentos e, por conta disso, descobrem-se em situações de perda, desilusão, confusão e solidão. Ou seja, vivenciam um sentimento agudo de inadequação. São homens sem norte e mulheres estereotipadas à mercê de eventos surreais, como a evaporação de um elefante, ou inseridos em circunstâncias inseminadas de um significado súbito e inesperado, caso da mulher que se refugia na imaginação para lidar com o cotidiano anódino.

Assinado por Monique Gardenberg e Michele Matalon, o espetáculo é envolvente e desembrulha para o público a peculiar e curiosa visão de mundo do autor. No inicial O pássaro de cordas e as Mulheres da Terça-Feira, um homem desempregado e de temperamento passivo (Caco Ciocler) atende uma série de ligações de uma mulher lasciva, que afirma conhecê-lo. Instantes depois, ele sai de casa para procurar o gato de estimação de sua esposa opressora e bem-sucedida (Maria Luiza Mendonça). No caminho, depara-se com uma adolescente (Fernanda de Freitas), que discorre sobre a morte. O encontro, de alguma forma, o faz refletir sobre a pequenez de sua vida.     

O conto seguinte, O comunicado do canguru,mostra um funcionário do serviço de atendimento ao consumidor de uma loja de departamentos que se apaixona perdidamente ao ler a carta de alguém que não conhece e grava um CD declarando o seu amor unilateral. Ele divaga sobre o ciclo de vida de cangurus e a dignidade da imperfeição, deixando-se contaminar pela autodepreciação. Sem intenções profundas, o monólogo extrai seu interesse pelo inusitado da situação e se agiganta na interpretação maneirista e estilosa de Kiko Mascarenhas, quase estático sentado atrás de uma mesa.

Sono gira em torno de uma dona de casa infeliz (Maria Luisa Mendonça), que não dorme há dezessete dias e o fato mal é percebido pelo previsível marido (André Frateschi) e o filho insosso (Rodrigo Costa). Ela sempre diz e responde as mesmas coisas. Em busca da identidade perdida, só encontra tempo para si depois que sua família vai dormir. Em suas madrugadas insones, lê o romance Ana Karenina, de Tolstoi, e passa a embaralhar ficção com realidade. A insônia é um catalisador para a sua libertação. Mesmo apoiado em clichês, o conto gera emoções palpáveis.  

Mais explicitamente cômico, com piadas soltas, diálogos retóricos e pegada de desenho animado, Segundo ataque parodia a linguagem de animação japonesa. Subitamente faminto, um casal em lua de mel (Caco Ciocler e Marjorie Estiano) decide roubar uma lanchonete durante a madrugada. Ambos não querem encher os bolsos, mas saciar a fome e quebrar a maldição existente desde que o marido e um amigo invadiram uma padaria. O ataque terrorista rendera uma semana de pão para forrar o estômago. A premissa do conto é potencialmente interessante, pela tensão real e possíveis pontos de reflexão. Não avança, no entanto, além da brincadeira saborosa e inconseqüente.    

No derradeiro, O desaparecimento do elefante, um rapaz obcecado (Rafael Primot) conta para uma jornalista (Fernanda de Freitas) sua desvairada versão para o enigmático sumiço do elefante de um zoológico desativado – teve a visão de que o animal diminuía de tamanho. Empregado de uma fabricante de equipamentos de cozinha, ele defende o princípio da importância da unidade e do equilíbrio entre as coisas. Por sinal, as duas medidas que perdeu ao ser a única testemunha ocular do episódio. Desde então, se percebe dissonante e desarmonizado em sua rotina e nos ambientes que freqüenta.   

Nem todos os contos pinçados para o espetáculo preservam, na transposição teatral, o vigor e as entrelinhas. Nota-se, no registro leve e racional de alguns diálogos e narrações, uma relativa inadequação na hora de transmitir os terrores surreais da obra de Murakami. As transições entre os segmentos ainda requerem depuração. À parte tais percalços, possíveis de ajustes, a montagem revela um forte senso de dramaturgia. É possível apreender o cotidiano com contornos de absurdo retratado e traduzido pelo escritor japonês.

A direção não busca reinventar ou distorcer a matéria prima. Se um conto se pauta pelo humor, como Segundo ataque, este é assumido em sua plenitude. Se embute um drama, caso de O pássaro de cordas e as Mulheres da Terça-Feira, assim se materializa no palco. A encenação também recorre à projeção de imagens sobre bases transparentes, com closes oportunos, como em O comunicado do canguru, para injetar mais dinamismo à cena, realçar alguns aspectos imagéticos das tramas e instaurar outros ângulos narrativos. A cenografia de Daniela Thomas e Camila Schmidt, os figurinos de Claudia Kopke e a luz de Maneco Quinderé estão em sintonia com a montagem. A trilha sonora, que mistura de Mozart a Raul Seixas, Caetano Veloso a Criolo, exerce um papel importante e age como instância de observação e apontamento. 

Embora com naturais brilhos individuais, é o rendimento coeso do elenco que mais se destaca. Eles assumem personagens principais e coadjuvantes, e perambulam por múltiplos contextos, com eficiência, segurança e vibração. Tanto na pele do desempregado meditativo e subjugado pela esposa, quanto na do maloqueiro invasor de fast food, que fala e se veste como mano de periferia, Caco Ciocler entrega uma performance variante e varada por matizes. Maria Luiza Mendonça impõe-se com desembaraço como a esposa impertinente e a dona de casa embotada em busca da redescoberta pessoal. Com visual colorido, Marjorie Estiano está divertida no papel da cosplay (fantasia inspirada em quadrinhos, games e desenhos animados japoneses) que se expressa de maneira quase ininteligível. Sem tiques, Fernanda de Freitas se desincumbe satisfatoriamente da adolescente com inclinações lúgubres. Kiko Mascarenhas aciona um invulgar repertório de expressões faciais para dar sustentação ao retraído e dolente rapaz apaixonado. Rafael Primot dá vida ao sujeito abalado pelo sumiço de um elefante, no fio entre a sensibilidade e o delírio. André Frateschi, na dupla função de marido sem sal e de um personalista locutor de telejornal, e Clarissa Kiste, a companheira caricata de bancada, emanam carisma em suas intervenções.     

O espetáculo proporciona bons momentos com histórias que subvertem o cotidiano com doses de nonsense e insensatez. O autor desencava uma percepção singular da sociedade contemporânea. Em seu mundo, a fragilidade humana é evidenciada por meio de seres em descompasso. Se não descobriram ainda um significado para a vida, os personagens de Murakami estão atrás de um.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto André Gardemberg)

 

Avaliação: Bom

 

O Desaparecimento do Elefante

Texto: Haruki Murakami

Direção: Monique Gardenberg, Michele Matalon

Elenco: Caco Ciocler, Maria Luisa Mendonça, Fernanda de Freitas e outros. 

Estreou: 30/03/2012

Teatro Paulo Autran - Sesc Pinheiros (Rua Paes Leme, 195, Pinheiros. Fone: 3095- 9400). Sexta, 21h; sábado, 20h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 8 a R$ 32. Até 5 de maio.

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