EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: A Máquina do Tempo (ou longo agora)

Em uma das peças, o espectador circula por corredores, espaços vazios e escadas rolantes de um luxuoso hotel e, na sequência, enfrenta viagem de trem. Em outra, partilha de uma espécie de piquenique num parque, ouvindo e contando histórias dos tempos das avós. Na terceira, ele está inserido numa repartição pública de atmosfera surpreendente. Nas três montagens articuladas pelo instigante grupo OPOVOEMPÉ, o público é coagido a abandonar o papel de mero observador para se transformar em um ativo agente criador. Ou seja, ele participa da cena ora preenchendo as lacunas deixadas propositalmente ora dialogando com o que vê. Combinações e recombinações que levam as encenações a caminhos imprevistos e sentidos inusitados. Ele se torna coautor de obras que se valem da transgressão sadia da narrativa convencional.

Nesses experimentos cênicos, com procedimentos e elementos temáticos próprios, a dramaturgia segue uma partitura prévia, mas adquire outros significados e contextos a partir do resultado do atrito criativo entre elenco e platéia. São espetáculos compartilhados, que estabelecem nexos entre a substância artística apresentada e a argamassa da realidade. Trata-se de uma proposta de teatro que, sob a aparência da simplicidade e da banalidade, deixa pulsar uma sofisticada e pertinente reflexão sobre o estado de coisas atual. No caso dessa trilogia, uma meditação sobre o tempo, a memória e a arte de viver. Criada em 2004, a trupe, pilotada pela inquieta diretora Cristiane Zuan Esteves e um grupo de atrizes talentosas, tem desenvolvido trabalhos singulares, sem a preocupação de seguir modismos. A companhia não pretende ser original ou reinventar o palco. Busca, no entanto, abrir-se para o exercício de estéticas modernas e interativas. Montagens como 9:50 Qualquer Sofá e o duo AquiDentro e AquiFora foram tingidas pela ousadia cênica e linguagem inovadora.       

A mesma pegada se constata nesse projeto. O Farol tem início em um hotel, onde o público, dividido em pares, realiza um check-in, recebe aparelhos de MP3 e embarca em uma estação da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), de onde seguirá viagem até determinado ponto. Nessa inusitada e sensorial jornada, com pontos de movimentos, repousos e contemplação, as duplas são guiadas por atrizes do grupo. Elas interferem ou intervém o mínimo possível, justamente para evitar ao máximo a manipulação. O espectador se vê impulsionado a ressignificar sua relação com o tempo, seu vínculo com a geografia da cidade e sua percepção da realidade. Em alguns momentos, ele até é condicionado a olhar para algum detalhe específico ou a sua concentração é rompida para ler frases veiculadas por dispositivos tecnológicos. O documento sonoro veiculado pelo MP3 aborda especialmente temas relacionados à velocidade contemporânea, que atropela os processos do devaneio, da fantasia e da vida interior. O mérito é não entregar imagens que signifiquem algo ou simbolizem alguma coisa que o espectador terá de decifrar. Ele mesmo irá construir o seu enredo por meio dos próprios estímulos naturais oferecidos pelos diversos ambientes a que está submetido.  

O intimista e delicado O Espelho (ao lado) transcorre em um parque público, em meio à natureza. Sentado em torno de uma mesa, servindo-se de café e guloseimas, o público passa a fazer parte do convescote. Despidas de figurinos, as atrizes desembrulham histórias do passado ou revelam emoções vivenciadas ao lado de pessoas queridas, como avôs e avós. São memórias e reminiscências que trazem de volta modas que já passaram, hábitos esquecidos, sensações antigas, pessoas que já se foram. Aqui também o espectador ouve individualmente, por meio de velhas fitas cassetes, um conjunto de depoimentos de crianças e adultos sobre lembranças passadas, o momento atual e a expectativa em relação ao que ainda virá. A grande sacada é que, sem notar e de maneira natural, o espectador se esquece do fato de que se trata de um espetáculo. Vai se formando uma atmosfera de encantamento e singeleza, em que passado, presente e futuro se misturam e se intercambiam. 

A Festa (ao lado), ambientada num atemporal estabelecimento público com divisões de atendimento, assentos de espera e relógios que não marcam horas, o público participa de jogos, rotinas banais e é incentivado a dimensionar certos aspectos da sua realidade. A partir da data de nascimento, por exemplo, calcula-se o número de dias vividos de cada um ali presente. Não tão aberto a divagações filosóficas quanto os dois anteriores, este constrói sua narrativa emaranhando cenas que capturam e expressam temas vinculados ao tipo de vida que levamos, numa investigação da nossa condição humana. De forma indireta e sensível, aborda a natureza finita do homem e lança uma questão: estamos condenados a repetir rotinas como a de passar um prato de uma mão a outra indefinidamente? 

O que tais espetáculos aspiram, e o fazem com precisão cirúrgica, é despertar no espectador o sentimento de que a aceleração do tempo, o amesquinhamento da memória e a diluição da vida subjetiva são sintomas de uma sociedade doente. Com alguma resignação, verifica-se que tudo se modifica, mesmo aquilo que efetivamente não gostaríamos que mudasse. Em uma ampla leitura, todas têm o efeito energizante de estimular um olhar mais atento aos pormenores, de valorizar o prosaico, de fazer com que observemos ângulos que antes tinham passado despercebidos. Como um quadro esquecido numa parede, uma janela de trem pelo qual se espreita um conjunto habitacional popular às margens do Rio Pinheiros, uma história de criança, uma nota musical que transforma a cena. São montagens que encorajam a valorização das coisas realmente importantes. Uma lição que assimilamos hoje, mas que acabamos por desprezar no dia seguinte. Sem pedantismo, a trilogia torpedeia a idéia de que a desumanização da sociedade é um processo inexorável.    

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )                                                            

(Foto inicial: O Farol / Roberto Setton)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Máquina do Tempo (ou longo agora)

Dramaturgia e Direção: Cristiane Zuan Esteves                                                                   

Elenco: Ana Luiza Leão, Cristiane Zuan Esteves, Graziela Mantoanelli, Manuela Afonso, Paula Lopez e Paula Possani.

Estreou: 22 de junho.

Anote aí:

O Farol. Dias 23, 24 e 25 de julho, das 11h às 15h. Sheraton São Paulo WTC Hotel (Avenida das Nações Unidas, 12559, Brooklin Novo. Reserva pelo site O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. ou pelo telefone 11. 8389-8231). Grátis.

O Espelho. Dias 22 e 29 de julho, 10h. Espaço das Figueiras do Parque da Água Branca (Avenida Francisco Matarazzo, 455, Água Branca. Retirar ingresso com uma hora de antecedência.                                                                                                                               

A Festa. Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Espaço B_arco (Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 426, Pinheiros. Fone: 3081-6986). Até 5 de agosto.

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