EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: A Reação

Como é possível afirmar que alguém está amando de verdade se ela está drogada?  Esta é a premissa embutida na desafiadora obra da escritora britânica Lucy Prebble, que se vale de uma história romântica pouco convencional para instituir no palco uma estimulante discussão sobre os fundamentos da depressão e as conseqüências da aplicação de medicamentos sobre o corpo humano. Dirigida por Clara Carvalho, a montagem cava o essencial do texto, que se move num terreno perigoso ao examinar, pela chave da dramaturgia, a eficácia e pertinência do uso de antidepressivos para o tratamento de doenças mentais. A peça também discute se tal medicação pode atiçar o fantasma da mudança de personalidade, o que implicaria no desaparecimento de sentimentos desconfortáveis ou disfuncionais naturais à existência humana.

O enredo começa quando dois voluntários não deprimidos e desconhecidos entre si são escalados para passar algumas semanas dentro de um centro médico, sem contato com o mundo exterior e monitorados o tempo todo. Durante esse período, eles serão submetidos a um teste com um novo antidepressivo experimental, ainda sem licença de comercialização, para descobrir eventuais ocorrências de efeitos colaterais. 

As duas cobaias ficarão sob a supervisão da psiquiatra Lorna (Kadi Moreno), que sofre de crises depressivas e se recusa a ser medicada por remédios. Dono da clínica, o médico Thomas (Rubens Caribé) irá supervisioná-la em seu trabalho. De olho na futura exploração comercial do produto, ele acredita que a droga pode agir positivamente contra a depressão, um mal que, avalia, ganhou feições de epidemia. Ao neutralizar os sintomas do transtorno, restabelecendo a alegria de viver da pessoa deprimida, talvez sua empresa farmacêutica tenha descoberto uma espécie de Viagra para o coração.

Na contramão do entusiasmo do colega, Lorna não acredita que a doença seja relacionada com desequilíbrio químico e que possa ser curada por comprimidos. Para ela, os que sofrem desse mal-estar simplesmente exibem uma visão mais distinta da realidade do mundo e de si mesmas. Nesse caso, a depressão configuraria uma resposta natural a fatores externos como quedas, perdas e crises. Mascarar tais problemas com a aplicação de cápsulas artificiais equivaleria negar a oportunidade de ser plenamente humano.

Uma reviravolta acontece no momento em que, à revelia das expectativas dos médicos, Tristan (Andre Bankoff) e Connie (Isabella Lemos) se apaixonam durante a experiência. Enquanto o rapaz de espírito aventureiro fia-se na consistência do sentimento, a estudante de psicologia aposta que o aumento dos níveis de dopamina restaurou a estabilidade química e produziu a afeição entre eles. Se os jovens passam a curtir o amor despertado, Lorna e Thomas querem esfriar a crescente relação, que ameaça os resultados do experimento, e se lançam ao debate sobre a validade da medicação e a natureza da depressão. É um dos momentos nevrálgicos, uma vez que logo fica evidente que os dois psiquiatras estão discutindo o envolvimento amoroso que mantiveram no passado.

O público está exposto a um drama honesto que, se carece de um aprofundamento do tema e por vezes se perde num jogo de intrigas e conflitos vagos entre os personagens, atrai em razão das questões relacionadas com o afeto e a racionalidade, o coração e o cérebro. Longe de ser trivial, nas entrelinhas a autora também borda reflexões sobre a postura aética dos grandes laboratórios farmacêuticos. É um assunto por demais atual porque se sabe que existe uma farta oferta de medicamentos e, ao mesmo tempo, uma divulgação não do remédio, mas da depressão.

A direção de Clara Carvalho impõe dinamismo e é eficiente ao realçar as ações que sustentam as práticas de laboratório e os resultados desse processo sobre o comportamento do grupo. Sua leitura busca facilitar a apreensão das ideias em circulação. Afinal, uma avalanche de teorias é derramada sobre o espectador a respeito da depressão e sua melhor forma de tratamento – fala-se até em placebo, substância sem propriedades de cura ministrada ao paciente com a finalidade de sugestioná-lo mentalmente. O público, no entanto, acompanha com relativa facilidade esse jogo enganosamente cerebral. Com projeções de relatórios médicos no fundo do palco, e um espaço ocupado por poucos objetos cênicos, a encenação se mantém dinâmica e a diretora teve a lucidez de pinçar só a essência, sem forçar além da medida.

Em cena, o elenco irradia pulsação. A bordo de performances seguras e convenientes, o conjunto encarna figuras reais que parecem habitar um mundo artificial. Isabella Lemos dota Connie com calor, sensibilidade e algumas porções de nervosismo. Andre Bankoff é igualmente efetivo na composição de um Tristan volátil, descontraído e rebelde, que no desfecho se torna comovente. Tanto a atriz quanto o ator assumem seres emocionalmente instáveis, que não podem confiar um no outro nem em si próprios.

Amparada em modos rígidos e diálogo afiado, Kadi Moreno incorpora uma Lorna impassível e ansiosa, que procura disfarçar uma turbulência existencial. À medida que avança a narrativa, ela se transforma em uma mulher frágil e desalentada. No papel de Thomas, sujeito imbuído da crença de que os antidepressivos são uma panacéia universal, Rubens Caribé transpira firmeza e deixa entrever a face ambígua do psiquiatra, que se esforça em não revelar nada sobre sua personalidade.

Não se trata de um texto que intenciona a polêmica fácil. É divertido ao abordar a vertigem do amor e oportuno ao desnudar a cultura de pílulas mágicas e o medo do ser humano em encarar distúrbios neurológicos. Em uma imagem espantosa, como se fosse um Hamlet redivivo, Thomas profere uma palestra e segura o cérebro de seu falecido pai. Prebble não propala a isenção. A maneira como a dramaturga observa alguns procedimentos terapêuticos exala ceticismo. Ao compreendermos cada vez mais o processo químico do cérebro, males como a depressão podem estar com os dias contados. No entanto, o fim dessa doença mental pode destruir os enigmas do amor. A peça desembrulha esse impasse.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Sergio Caddah)

 

Avaliação: Bom

 

A Reação

Texto: Lucy Prebble

Direção: Clara Carvalho

Elenco: Isabella Lemos, Andre Bankoff, Kadi Moreno e Rubens Caribé.

Estreou: 16/10/2015

Teatro Vivo (Avenida Dr. Chucri Zaidan, 860, Morumbi. Fone: 97420.1520). Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 18h. R$ 30 e R$ 40. Até 20 de dezembro.

 

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