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Teatro: Filoctetes

Da mitologia grega para os tempos contemporâneos. Nesta versão politizada do herói de guerra da Grécia Antiga, o dramaturgo e diretor alemão Heiner Müller (1929-1995) desconstrói a obra de Sófocles e a adapta seus fundamentos ao contexto atual, num vigoroso processo que resgata mitos, narrativas e contextos do passado e os expõem à luz do presente e do futuro. Não há mais o coro grego comentando a ação, a presença do deus ex machina e suas intervenções mágicas, a menção a um plano divino. Na peça, que se abre com o personagem-título ostentando uma máscara de clown, flagrante ironia brechtiana, e os outros dois usando óculos de segurança, estão apenas homens defrontando-se entre si, como inimigos mortais.

É bom que se diga que Müller não produz textos de fácil digestão. Ele é um autor tão difícil quanto fascinante, verborrágico, que empreende o exercício de vasculhar a herança teatral e humana e transformá-la em dramaturgia. Sem fechar questão ou entregar leitura pronta. Não por acaso, no prólogo é ressaltado que o que será mostrado ali não comporta moral alguma. Cabe ao público elaborar sua reflexão.

A montagem da Companhia Razões Inversas, que celebra 25 anos de existência, desembrulha um espetáculo forte, denso, de impacto. Que valoriza o didatismo embutido no teatro do dramaturgo, sinalizado, por exemplo, pela presença de uma lousa em cena, uma não ação com o condão de aclarar os eventos. O drama começa depois da tragédia já ter ocorrida. Na arena inóspita, uma lona branca bordada por uma cerca, espaço metafórico que leva o nada a coisa nenhuma, movimentam-se três criaturas. Uma delas é Odisseu (Ulysses), sujeito ardiloso capaz de solapar os meios para alcançar determinados fins. Ele está influenciado pela profecia de um oráculo, que revela ser possível vencer a Guerra de Troia desde que se utilize o arco mágico em poder de Filoctetes, o habilidoso arqueiro exilado há dez anos na ilha de Lemnos, após ser picado por uma serpente e desenvolver chaga fétida que jamais se cicatriza. A terceira figura é Neoptólemo, filho do já morto Aquiles, o jovem cooptado por Odisseu para persuadir Filoctetes, valendo-se até da mentira e traição, a retornar ao campo de batalha de Troia e salvar o seu povo da ruína, num gesto de amor à pátria.

O pano de fundo é esse extenuante conflito bélico entre gregos e troianos, mas essa peça, escrita no início dos anos 1960, pode ser lida também como uma parábola política sobre a Guerra Fria em pleno andamento naquele período, que dividia capitalistas e comunistas e escancarava a irreconciliável luta entre valores individuais e coletivos - mesmo se declarando comunista, Müller manteve uma relação conturbada com o regime e sua peça projeta, não à toa, a fragilidade do indivíduo diante do poder do Estado.

Se no enredo de Sófocles o triângulo dramático tinha desenlace feliz, representado pelo retorno do herói ao cenário da guerra portando seu arco invencível, na revisão do autor alemão o desfecho é outro e ocorre o assassinato de Filoctetes. O simbolismo de seu nome, no entanto, será capitalizado pelo astuto Odisseu, que pretende disseminar a história de que ele teria sido morto por um soldado troiano, após se recusar a passar para o lado deles, o que alimentaria o ódio dos gregos. Ele também remodelou o perfil de Neoptólemo, aqui um representante da juventude inserido abruptamente na cultura dissimulada dos adultos. Em que pese ser um joguete nas mãos dos dois ladinos, o aprendiz compreende o que está em jogo e comete o ato brutal.  

Conceitual, a encenação de Marcio Aurelio se caracteriza pela sobriedade e explora sem deslizes o poder retórico do texto - um microfone posicionado na boca de cena amplifica as ideias em circulação na trama, evitando que as mesmas se reduzam ao palco. O diretor engrena a ação, sustentada pelos profusos diálogos, de maneira a prender a atenção do espectador. Não há cenas descartáveis e as marcações revelam uma leitura reverente, atenta e rigorosa, que estimula a eclosão das diversas intenções da peça.  Nesse refinado equilíbrio, a direção nunca perde a essência dos acontecimentos.

O elenco, que passou por cuidadoso preparo para alcançar performance harmoniosa,  enfrenta com ímpeto, fibra e nervo o desafio de seduzir a platéia pelas palavras. Munido dessa vitalidade à flor da pele, o trio encarna estes homens moralmente enfraquecidos e debilitados eticamente. Com expressões de uma fera, Paulo Marcello incorpora um Filoctetes trágico e determinado, avesso ao interesse pelo bem comum, que amargamente se recusa a compartilhar quaisquer razões ou justificativas para aderir à paz. Washington Luiz interpreta o ingênuo e idealista Neoptólemo que, gradativamente, ganha silhueta dramática conforme mergulha nos duelos verbais com o arqueiro. Na pele do anti-herói Odisseu, Marcelo Lazzaratto sublinha o caráter cínico e farisaico do personagem, que admite não haver mais lugar para a virtude no mundo.

Trata-se de uma instigante montagem de um texto poeticamente belo, pontuado por questões éticas, que aborda a manipulação de discursos e institui no palco um debate predominantemente político. Na peça, os três seres funcionam como metáforas. Odisseu encarna o pragmatismo frio, Filoctetes abraça a individualidade infértil e Neoptólemo defende a urgência do caráter. No entanto, curiosamente formam uma espécie de políticos sem povo, entregues a si e que, por conta disso, causam horror. Vivo, Filoctetes era visto como uma personalidade insubstituível. Morto, seu corpo também atende a propósitos escusos. A tragédia virou uma farsa. Ou uma sátira trágica.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto João Caldas)

 

Avaliação: Ótimo

 

Filoctetes

Texto: Heiner Müller

Direção: Marcio Aurelio

Elenco: Paulo Marcello, Washington Luiz e Marcelo Lazzaratto

Estreou: 25/09/2015

Funarte (Alameda Nothmann, 1.058, Campos Elíseos. Fone: 3662-5177). Sexta e sábado, 21h; domingo, 20h. Ingresso: R$ 20. Até 20 de dezembro.

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