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Teatro: Maratona de Nova York

O início da peça não causa efeito. Mário e Steve estão treinando para participar da Maratona de Nova York, a corrida urbana mais popular do mundo. Correm e falam, discutem aspectos físicos e mentais da prática. Um deles menciona o mito de um soldado grego, o primeiro homem a correr tão longe para anunciar a vitória grega sobre o exército persa. Exausto, ao fim da jornada, acabou morrendo. Nas entrelinhas desses triviais diálogos, no entanto, o púbico começa a suspeitar de que a realidade talvez não seja a que se vislumbra no palco. E que não está diante de um típico treinamento de maratonistas. Indícios se acumulam aqui e ali e, no decorrer da trama, aflora a notícia de um misterioso acidente.  Pode suscitar, à primeira vista, que dois homens correndo sem parar por sessenta minutos é algo absolutamente tedioso. Mas há um registro irônico no instigante texto do dramaturgo italiano Edoardo Erba, que ganhou inspirada montagem inédita no Brasil assinada por Bel Kutner e estrelada por Anderson Muller e Raoni Carneiro. Nessa peça, de enganosa banalidade, os personagens relembram momentos marcantes de suas vidas, da infância até ao relacionamento com as mulheres. O autor se vale da corrida prolongada para tecer reflexões sobre Deus e morte, justiça, amor e família.  Em doses homeopáticas, a narrativa assume um viés existencialista, até transcendental, e permite-se um final em aberto.

Hipocondríaco e irreverente, Mario (Anderson Muller) encara a corrida como uma atividade prazerosa. Parece mais cansado que o colega e atribui a uma gripe recente sua cadência irregular. Mais exigente com sua condição física, Steve (Raoni Carneiro) defende por analogia que, se treinar sem determinação e afinco, não obterá êxito na vida. São dois indivíduos de pensamentos diferentes e que ostentam pequenos hábitos irritantes. Um repreende o outro por falas que denotam insegurança em relação ao sucesso da empreitada. Alguém deles parece ter esquecido as chaves dentro do carro. Quando um se adianta ou demarca novo ritmo, não esconde um sorriso maroto de superioridade. Ambos produzem um movimento típico de balé, com acelerações e desacelerações. Num determinado momento, há a menção a uma ex-namorada de um deles, que o outro acabou conquistando. Ao ser rememorado, o episódio irá contribuir para piorar o clima entre dois homens em pleno exercício de tentar se exceder e sobrepujar o outro. Em performance irrepreensível e plena de virtudes, Anderson Muller e Raoni Carneiro se submetem a um fatigante teste de fôlego e terminam a montagem encharcados de suor, como maratonistas ao fim da prova. A dupla corre “sem sair do lugar” por praticamente toda a ação e o impacto físico é naturalmente forte.  O curioso é que o tom da interlocução desencadeado pelos atores – agressivo, espirituoso, clemente, prosaico - é determinado pelo estado físico de cada um deles durante a encenação. Mais notável ainda é a sensação, por vezes, de que Muller e Carneiro parecem estar caminhando em uma praça ou jogando conversa fora acomodados em um café.

A direção de Bel Kutner contorna de maneira exemplar o complicado obstáculo de evitar a sensação de enfado, algo possível a partir do fato concreto de que no palco duas pessoas correm o tempo inteiro. O que se vê, no entanto, é uma gama variada de imagens. Os atores até relaxam em cena, mas jamais perdem um instante do foco. Com marcações meticulosas, emerge um raro equilíbrio entre o compasso da corrida e os duelos verbais. Na encenação, o som da respiração, o vai e vem das palavras e os silêncios são valorizados e estimulados. Muitas vezes eles estão ombreados, de frente para a platéia. Aí, sutil e lentamente, mudam a direção, se deslocando para a esquerda ou direita. E, como em uma maratona de verdade, um deles desacelera e se distancia, para mais adiante retomar a dianteira, potencializando a amistosa rivalidade entre os dois corredores. Para reforçar o efeito cênico, projeções de vídeo, captadas por uma câmera 360º, funcionam como moldura ambiental e referência para a passagem do tempo. Cheias de matizes, a iluminação de Paulo Cesar Medeiros e a trilha sonora de André Abujamra dão pulsação e injetam mais dinamismo ao espetáculo. Difícil não enxergar nessa obsessão pela corrida a pé, de longo percurso, uma metáfora inteligente e crível da existência humana. Se os diálogos transpiram ironia, a história vaza tragicidade. Mário e Steve ilustram a natureza compulsiva, inexorável e assustadora da vida.                                                                                                                                   

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )                                                              

(Foto Desirée do Valle)

 

Avaliação: Ótimo

 

Maratona de Nova York

Texto: Edoardo Erba                                                                                                                                     

Direção: Bel Kutner                                                                                                            

Elenco: Anderson Muller e Raoni Carneiro                                                                         

Estreou: 06/07/2012                                                                                                                                 

Teatro Eva Herz (Conjunto Nacional, Av. Paulista, 2073, Cerqueira César. Fone: 3170-4059).  Sábado, 21h, e domingo, 19h. Ingressos: R$ 60. Até 28 de outubro.

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