EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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DVD: A Bela da Tarde

Vivida pela atriz francesa Catherine Deneuve, a protagonista é uma mulher linda e elegante casada com um médico. Séverine, no entanto, está dividida. O filme, do cineasta espanhol Luis Buñuel, ganhador do Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1967, é um mergulho nos desvãos da sexualidade, do desejo e do feminino. No diálogo de abertura, o marido reclama da frigidez da companheira e diz querer um filho. A conversa é interrompida por uma cena: Pierre ordena que os cocheiros parem e manda Séverine descer. Ela pergunta o que está acontecendo e ele apenas repete a ordem. A mulher resiste e luta. O homem ordena que os cocheiros a levem à força e batam “nessa vagabunda”. Séverine resiste e grita, enquanto é arrastada para o bosque: “A culpa não é só minha, Pierre, a culpa é sua também!”. Há outra cena sintomática envolvendo a personagem central, que fica visivelmente perturbada quando escuta de sua amiga Renée que Henriette freqüenta um bordel várias vezes por semana. Mais adiante ela própria tenta ir ao prostíbulo, mas recua ao chegar na porta. Senta-se numa praça enquanto ouvimos soar o sino da Igreja. O conflito é evidente: ir em frente ou voltar, obedecer ou transgredir, Eva ou Maria? Já na casa de prostituição, recebe o apelido de Belle de Jour, inspirado no horário da bela: ela só pode ir durante as tardes, até às 5 horas. Com o diabo no corpo e como uma colegial que cumpre, obediente, suas obrigações e segue a rotina escolar, Séverine entra e sai religiosamente do local, cumprindo rigorosamente a liturgia católica do desejo/culpa/expiação. Lugar de mulher que deseja é o bordel e não o espaço doméstico da esposa reprodutora. A desobediência exige punição, que Séverine mesma providencia em seus devaneios. Convém lembrar a insistência de Pierre ao longo do filme para que tenham um filho e a recusa não menos insistente dela.

O que leva a bela burguesa a frequentar aquele lugar? O dinheiro não é o motivo. Séverine, paradoxalmente frígida e ninfomaníaca, encarna a dissociação do feminino na cultura. Eva sedutora e Maria, a Virgem. Ou a Madalena? Nessa nova constelação familiar que começa a surgir com a modernidade, uma esposa com “apetite sexual exagerado” desorganiza o conjunto: lugar da puta é o bordel. Freud observou que uma fantasia típica do homem é a dissociação entre a mãe, símbolo da mulher pura, e a prostituta, símbolo da mulher sexualizada. De um lado, a mulher amada, de outro, a mulher desejada. A cultura dissocia a mulher da sexualidade e projeta no homem o desejo sexual para criar essa mulher idealizada como pura, a mulher-mãe imaculada. Essa dissociação cultural preserva a imagem assexuada da mãe e a sexualidade será aquilo que a corrompe. Séverine age como as possuídas que no século XVII sucederam as bruxas perseguidas pela Inquisição e antecederam as histéricas estudadas por Freud no século XIX. Ela não se atribui culpa ou desejo: é o outro, o marido, que a deseja e a possui, à sua revelia, em suas fantasias. Como o Pierre de carne e osso não faz nada disso, Séverine o culpa por sua traição contumaz. Para ela, não é o seu próprio desejo que a empurra para o prostíbulo e, sim, a falta de atenção ou de virilidade do marido. No diálogo inicial, ela o acusa rispidamente por sua ternura. Definitivamente, virilidade não combina com afeto.

A fantasia da protagonista transforma o marido terno e gentil em um homem violento, que a obriga a entregar-se aos cocheiros enquanto ele a observa. A cada dia ela fica mais à vontade, exercitando com desenvoltura uma sexualidade que condena em si, a não ser que se expresse no bordel. A passividade se apresenta em cada uma de suas fantasias: amarrada, obrigada, coagida, ela nunca está presente em seus desejos e atos. A repressão esconde dela seus desejos e a faz olhar sua sexualidade, que condena, como uma parte estranha. Essa tentativa de mutilação de si com o fim de se livrar da culpa é o que Freud analisou como recalcamento. Depois do revelador encontro com Husson, amigo do casal, Séverine comunica a Madame Anaïs que não voltará mais. Mas o bordel-escola cumpriu sua função e a bela parece em paz com sua sexualidade. Ela queria se libertar e para isso submeteu-se, sem resistir, às imposições de sua sexualidade. Transgressora ou submissa? Provavelmente ambos. O longa discute a sexualidade feminina num momento em que a pílula anticoncepcional veio colocar muita lenha nessa fogueira, tendo proporcionado à mulher um prazer que não a obrigava a assumir a maternidade. Vivemos sob a tirania da sexualidade, sob o domínio do orgasmo cultuado particularmente por Reich e pela sexologia. Para provar que somos livres, somos coagidos a nos submeter ao sexo compulsório, como a bela de Buñuel. Ela não acredita que ama os homens com quem se deita. Está interessada apenas em si mesma – é também uma narcisista. Séverine revela-se feliz ao final. Imóvel como uma pedra, Pierre parece o objeto ideal sobre o qual ela pode projetar suas fantasias e amar-se nas suas imagens.

(Márcia Neder – psicóloga e psicanalista / O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )                                                                 

(Texto da autora extraído da Revista Insight-Inteligência)

 

A Bela da Tarde                                                                                                                

Título Original: Belle de Jour (França, 1967)                                                                     

Gênero: Drama, 100 min                                                                                                          

Direção: Luis Buñuel                                                                                                                         

Elenco: Jean Sorel, Michel Piccoli, Catherine Deneuve e outros    

Distribuidora: Silver Screen   

 

Veja trailer do filme:

 


 

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