EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: A Máquina Tchékhov

Criador versus criaturas. O artifício de colocar cara a cara um autor e suas criações funciona para instaurar, entre outras possibilidades, uma espécie de arena para acerto de contas. É o que propõe Matéi Visniec, dramaturgo romeno radicado na França, ao confrontar o dramaturgo e romancista russo Anton Tchékhov (1860-1904) com alguns dos personagens de suas principais obras.

Na trama, dirigida por Clara Carvalho e Denise Weinberg, um moribundo Tchékhov está morrendo lentamente de tuberculose. Nesse estado, é assombrado por figuras saídas das peças A Gaivota, As Três Irmãs, O Jardim das Cerejeiras, Ivanov e Tio Vânia. Como na dramaturgia tchekhoviana, o texto põe a trupe para falar sobre a vida e a morte, anseios e fracassos, memórias e ressentimentos. De alguma forma, foram contemplados com um novo destino, contexto e conflito. A interação entre eles acontece por meio de um enredo relativamente simples, movimentado por diálogos inventivos e situações que beiram o patético e o irônico.  

Também como um personagem do enredo, Tchékhov assume as funções de confessor, terapeuta e juiz. A maioria de suas criaturas está insatisfeita com o que lhes aconteceu depois do fim de suas histórias. Ele, no entanto, parece indiferente às suas dores e queixas. Talvez se sinta impotente para alterar a sina de cada um ou queira, no íntimo, se eximir de suas responsabilidades. O público é envolvido pela circunstância, mesmo que conheça pouco ou nada do universo do escritor russo. O interesse é despertado pelo comportamento dos personagens, pelos insólitos relacionamentos que travam entre si e a relação deles com o criador.

Não faltam imagens surpreendentes a partir dessa nova realidade. Em momento revelador, Tchékhov aconselha a um ferido Treplev, o incompreendido escritor de A Gaivota, a evitar em suas obras os sermões disfarçados. “Não tente transmitir uma mensagem, mostre a vida sem tentar provar nada”. A atriz em fim de carreira Arkadina, que se relaciona de forma ambígua com o filho Treplev, chega a soltar um desabafo: “Primeiro ele falha em todos os suicídios, e depois me obriga a cuidar dele como uma criança."

Em típico escárnio de Visniec, o capitão Solioni, conhecido por suas frases desconcertantes, adverte o tenente e barão Tuzenbach para não confundir a mente humana com a mente russa, “porque o cérebro russo não pensa como os outros cérebros”. Ambos são apaixonados por Irina, uma d´As Três Irmãs, e estão prestes a duelar até a morte.

No mesmo diapasão irônico, as irmãs Olga, Macha e Irina anunciam que finalmente irão se mudar da pequena vila do interior da Rússia para a capital Moscou. “No ano que vem”, avisa Olga, mais uma vez reforçando a inércia em que vivem. O protagonista também recebe a visita da judia deserdada Anna Petrovna (Ivanov), que morreu de tuberculose. “Eu vim aqui para ensiná-lo a morrer”, informa-o.

No encontro com Firs (O Jardim das Cerejeiras), o criado que serviu a várias gerações na família Ranievskaia, e acabou esquecido num casarão vazio, a melancolia explode de vez. “Eu me pergunto por que somos todos infelizes”. Tchékhov retruca: "Eu tenho dois homens dentro de mim. Um é o médico, o outro, o doente”.

O desiludido Tio Vânia, da peça homônima, ao contrário das fracassadas tentativas do roteiro original, aqui consegue matar o professor Serebriakov, a quem devotava admiração. Foi condenado a quinze anos de prisão e não mostra arrependimento. “Eu matei um homem, um velho, e sou feliz por isso”, revela ao dramaturgo. “Eu tirei sua vida porque você arruinou a vida e a fortuna da minha irmã”, diz, dirigindo-se ao fantasma do homem assassinado. 

Lopakhin (O Jardim das Cerejeiras) é flagrado depois de ter comprado o pomar, cortado as árvores e iniciado a construção do desejado conjunto habitacional. Ex-empregado da propriedade, ele se encontra ansioso e confuso. “Eu sou o rei dos idiotas, eu queria a mulher e acabei possuindo o cerejal”, conclui, resignado.

Três médicos ressurgem para expiar suas frustrações: o intransigente Lvov (Ivanov), o niilista Tchebutkin (As Três Irmãs) e o infatigável Astrov (Tio Vânia). Ao contemplarem o cadáver de Tchékhov, logo na abertura do espetáculo, eles ativam uma discussão memorável. “Ele foi um grande escritor, mas seus personagens não têm força moral”, atesta Lvov. “Ele é grande sim, mas muito entediante também”, emenda Tchebutikin. “Ele é entediante porque seus personagens são monótonos, como todos nós”, arremata Astrov. 

Em uma sequência amarga, a ex-aristocrática Ranievskaia (O Jardim das Cerejeiras) participa de um jogo de dados em que sempre perde. Lamenta não ter sorte na roleta e ser azarada também em assuntos do coração. Ela não consegue se desvencilhar da lembrança do filho morto Gricha e acha que Deus o levou para castigá-la.

A fauna conta ainda com um jovem andarilho (O Jardim das Cerejeiras), que vagueia continuamente perdido pelos ambientes. Na perspectiva de Visniec, ele seria uma síntese de Estragon e Vladimir, par central de Esperando Godot, de Beckett. Na montagem, ele ganhou pendores revolucionários.

A direção de Clara Carvalho e Denise Weinberg combina várias pessoas, lugares e acontecimentos que mudam rapidamente no palco antes que dêem sinal de esgotamento. Em que pese o previsível ritmo lento, é uma encenação que se vale de mínimos adereços e privilegia a interpretação. A cenografia funcional de Chris Aizner e a iluminação detalhista de Wagner Pinto sugerem os diferentes locais e momentos.

Afinado ao pensamento e à proposta das diretoras, o elenco articula boas performances ao dar veracidade a personagens incapazes de se tornarem plenamente realizados. Na pele do autor russo, Brian Penido empenha atuação consistente e de acento austero. Mariana Muniz sobressai no desempenho da melancólica Ranievskaia e da dúbia Arkadina e se desincumbe satisfatoriamente de Olga e Anfissa, a velha criada de As Três Irmãs que, nesta obra, cuida de Tchékhov. Ariana Silva é correta como Irina.  Em minutos, Dinah Feldman salta de uma lúgubre Ana Petrovna para uma esfuziante Macha.

Emmilio Moreira exerce presença forte na composição de Lvov, Tio Vânia e Tuzenbach. Versátil, Fernando Poli precipita os conflitos de Firs, Tchebutikin e Lopakhin com as nuances necessárias. Fernando Rocha transpira desvelo e intensidade nas interpretações de Astrov, Solioni e do crupiê. Michel Waisman imprime ao andarilho um modelo de delicadeza e corporifica com segurança o perfil titubeante de Treplev. Quando estão à margem da cena, os atores caminham vagarosamente, simulando espectros – eles projetam os delírios da mente de um escritor perdido em sua imaginação, em outra possível leitura do espetáculo.

Densa e desafiadora, a montagem consegue enovelar naturalmente as dramaturgias de Tchékhov e Visniec. Do escritor russo, há os silêncios, o tédio e as ilusões despedaçadas. Um compêndio que ganha o registro tragicômico e a ironia mordaz do dramaturgo romeno. Cada um ao seu modo, ambos flertam com o absurdo e tratam incisivamente de questões políticas e sociais de suas respectivas épocas. Tanto em um quanto no outro, os personagens sofrem da fatalidade de, mesmo vencendo, sentirem-se derrotados.     

 (Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Ronaldo Gutierrez)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Máquina Tchékhov

Texto: Matéi Visniec

Direção: Clara Carvalho e Denise Weinberg

Elenco: Brian Penido, Mariana Muniz, Michel Waisman e outros.

Estreou: 08/08/2015

Instituto Cultural Capobianco (Rua Álvaro de Carvalho, 97, Centro. Fone: 3237-1187). Sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 20. Até 25 de outubro.

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