Teatro: Isso É o que Ela Pensa (RJ)
- Criado em Sábado, 03 Março 2012 18:49
- Escrito por Edgar Olimpio de Souza
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O dramaturgo inglês Alan Ayckbourn abre a peça com a cinquentona Susan atordoada no jardim, recuperando a consciência após ser golpeada na cabeça ao pisar em um ancinho. Não demora e vamos perceber que ela se encontra em uma sinuca de bico emocional, intelectual e sexual, em pleno processo de perda de contato com a realidade. Insatisfeita com sua vida e sentindo-se negligenciada no casamento, ela idealiza uma família maravilhosa, que poderia ter sido mas não aconteceu, formada por um marido amoroso e dedicado (Andy), capaz de ainda proferir frases românticas, o irmão boa praça (Tony) e a filha adorável (Lucy), todos vestidos de branco e dispostos sempre a lhe beijar e oferecer taças de champanhe. É tudo tão redondo e bonito quanto, de certa forma, sombrio. Na verdade, ela está aprisionada a um matrimônio monótono e sem amor, como saberemos a partir da chegada da família de carne e osso, o que irá produz o segundo colapso nela. O marido Gerald é um pastor maçante, a cunhada Muriel vive com eles e é obcecada pelo falecido cônjuge e o filho Rick não fala com os pais desde que ingressou em uma seita religiosa repressora. Ou seja, se a atmosfera no plano da imaginação é idílica, na esfera da realidade o tom é de beligerância pura. Ambos as camadas são invisíveis uma para a outra.
Dirigido por Alexandre Tenório, o espetáculo se desenvolve dentro de um período de dois dias, tendo como único cenário o jardim da casa dessa melancólica classe média do subúrbio. O público é internalizado na cena, acompanhando de perto o desenrolar da confusão mental que acomete essa personagem tão necessitada de se refugiar na fantasia para enfrentar sua crise existencial. O que a platéia vê e ouve é a partir da perspectiva de Susan, presente o tempo todo no palco. A montagem transcorre em ritmo adequado, há tensão subjacente, o humor contamina os acontecimentos e os diálogos fluem com leveza. A opção estética de remover a quarta parede vale pelo envolvimento epidérmico, por permitir a eclosão de novos sentidos, mas o texto talvez requeresse um distanciamento crítico para melhor digerirmos o que no início é divertido e depois se torna alarmante. O espectador acompanha com prazer e certa aflição a justaposição e sobreposição desses dois mundos e o jogo psicanalítico de contrastes, projeções e desrepressão de desejos – a filha amorosa do reino do simulacro corresponde em sentido inverso ao filho ressentido da família real, assim como o irmão novo e arrojado da alucinação é o espelho invertido da cunhada parasita do núcleo verdadeiro, da mesma forma que o fictício marido devotado se contrapõe ao marido insensível da realidade. Não existe lógica aparente na ação e movimento dessas figuras de branco que interferem quando menos se espera e irrompem desavisadamente no jardim. São como fantasmas que saem das sombras e desaparecem novamente. Em determinado momento, o médico de família (Bill) se torna parte da imaginação de Susan e esta chega a fazer amor com um dos maridos, acreditando estar transando com o próprio demônio. No final inconclusivo e enigmático, o que não esgarça de forma alguma o tecido simbólico do texto, desenha-se um quadro surrealista e bizarro, de elementos fellinianos. Em plena confusão, a protagonista observa os eventos tornarem-se mais grotescos, com os dois planos embaralhados e entrelaçados – qual dimensão é a mais maligna? Seus sonhos, efetivamente, estão se transformando em um pesadelo.
Ayckbourn, cujas peças felizmente têm recebido montagens pulsantes nos palcos paulistanos nos últimos anos, exibe seu humor habitualmente seco. O mundo, para o dramaturgo, está mais para o inferno do que para o céu. Se é possível fazer reparos, é em relação aos alívios cômicos, inseridos meio que despropositados, como as piadas em torno das trapalhadas culinárias de Muriel. O elenco revela-se bem à vontade na incumbência de traduzir em cena um material dramático pulsante, com personagens convincentes e uma trama difícil que desnuda a face mais sombria da natureza humana. Com forte desempenho, Denise Weinberg emana vigor como Susan, sem histrionismo e encarando tudo com estranha naturalidade, equilibrando-se entre sentimentos de sarcasmo amargo e depressão. Em atuação convincente como Gerald, Mário César Camargo ilumina o caráter alheio e vaidoso do pastor, de arrogância disfarçada, mais preocupado com a história da paróquia do que com o leito conjugal. Na pele da viúva Muriel, em constante tentativa de aceitação, Clara Carvalho circula com desenvoltura e dosa o potencial cômico da personagem. Mário Borges interpreta com desembaraço o ansioso, desajeitado e inepto Bill e protagoniza um dos momentos mais hilários do espetáculo, quando finge enxergar uma das figuras imaginárias criadas por Susan, por quem alimenta paixão – seria mais um sintoma da insanidade dela? Eduardo Muniz faz de Rick uma figura ressentida, de franqueza crescente, capaz de dar ênfase cruel ao comportamento que avalia vergonhoso dos pais no passado. Bons atores, Francisco Bretas (Andy), José Roberto Jardim (Tony) e Clarissa Rockenback (Lucy) dão vida a personagens que, sob a doçura aparente, aos poucos acionam gestos sinistros e atitudes assustadoras. Um texto de fundo trágico, movido a observações mordazes, animado por figuras que despertam compaixão e na qual refugiar-se na imaginação pode significar uma rota que leva a lugar algum.
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(Foto Lígia Jardim)
Avaliação: Ótimo
Isso é o que Ela Pensa
Texto: Alan Ayckbourn
Direção: Alexandre Tenório
Elenco: DeniseWeinberg, Clara Carvalho, Mário César Camargo e outros
Estreou: 24/01/2012
Centro Cultural Banco do Brasil (Rua Primeiro de Março, 66, Centro. Fone: 21. 3808-2020). Quinta a domingo, 19h30. Ingresso: R$ 6. Até 31 de março.
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