EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: São Manuel Bueno, Mártir

O devotado Dom Manuel é um padre ateu bastante preocupado em seguir à risca a doutrina da fé que não partilha. Ele questiona a existência de Deus e não acredita na vida depois da morte, por exemplo. Dedicado a servir o seu povo, de maneira alguma, no entanto, ele acena com a hipótese de banir a religiosidade do meio público e chega a defender com veemência o exercício diário da crença. Por conta desse paradoxo, sua vocação acaba se revelando um fardo, um flagelo existencial. Escrito em 1930 pelo controvertido poeta, filósofo e escritor espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936), o texto expõe, com absoluto rigor, a angústia e o martírio de quem não crê, mas intui ser necessária a adoção de alguma convicção religiosa. O pároco da ficcional cidade do interior nordestino, uma vila à beira de um lago emoldurada por uma imenso morro, é um homem santo que mente por julgar um dever de consciência manter os habitantes do lugar fiéis à igreja e às suas liturgias. Venerado pela comunidade, Dom Manuel aposta no fervor religioso como antídoto para derrotar o tédio da vida.

O tema provocativo da transcendência e da santidade invertida recebeu montagem delicada, simples e heterodoxa do Sobrevento, um dos mais inquietos e inventivos grupos brasileiros de teatro de animação. Ao longo de quase três décadas de atuação, a companhia desenvolve um trabalho voltado tanto para as formas tradicionais do teatro de bonecos quanto para a experimentação, mergulhando na pesquisa das inúmeras possibilidades de encenação neste gênero. Para desembrulhar essa história de tensão dramática latente, a trupe se despiu de artifícios barrocos e da mera exibição de técnicas de animação. No lugar, investiu em uma encenação pontuada por ação e narração minimalistas. A trama transcorre em uma arena preenchida por uma mesa redonda que identifica a pequena cidade. No centro dela, cerca de trinta bonecos de madeira, estáticos e sem qualquer articulação, confeccionados pelo escultor Mandi, dão vida aos personagens do enredo.   

Valendo-se de uma narrativa em primeira pessoa, confessional, Ângela (Sandra Vargas) retorna à cidade natal para morar com a mãe na ocasião em que está em curso o processo de beatificação de Dom Manuel (Maurício Santana). Pouco tempo depois, quem regressa de uma temporada na América é seu irmão Lázaro (Luiz André Cherubini), imbuído da idéia de convencê-la a sair daquele lugar onde, avalia, as mulheres mandam nos homens e os padres mandam nas mulheres. Nesses anos emigrado, Lázaro se convertera em um homem prático, livre das crendices em geral e do domínio de uma igreja que considerava inquisitorial. Ângela, porém se recusa a ir embora de uma comunidade abençoada pela presença de um padre que se dedica a salvar matrimônios desajustados, reconciliar pais e filhos, consolar os amargurados e ajudar a todos a morrer com a consciência em paz. A história gira em torno do relacionamento desses três protagonistas.

Fluída, a montagem sustenta a atenção do público o tempo todo, mesmo extrapolando um pouco em sua duração. Os três atores-manipuladores, que espelham os personagens, movimentam os bonecos como se estes fossem peças de um tabuleiro xadrez, a representação de um presépio ou ícones de um infantil forte apache. Não se observa uma técnica aparente ou procedimento conhecido. A expressividade capturada e expandida é tamanha que a interação entre quem manipula e os pequenos artefatos borra a distância entre os dois planos, o do inanimado e do animado – as figuras parecem adquirir humanidade. Os espectadores presenciam um jogo lúdico, adentram a intimidade da cena e transformam a arena em uma espécie de assembléia. Executada ao vivo por três músicos, a trilha sonora, mix de erudito e popular, sublinha as camadas de emoção ali instauradas.  

Como forma de evidenciar as transformações pessoais, ao longo da encenação as figuras de madeira vão perdendo a sua configuração inicial, ora se diluindo ora se deformando. Por exemplo: o personagem Lázaro surge alegoricamente como um tigre, Dom Manuel chega a aparentar um pássaro espetado por três punhas espetados e Ângela desponta como um boneco cheio de particularidades. Ao fim, os três viram apenas tocos de pau maciço. São metamorfoses necessárias que anunciam que o espetáculo começa vitaminado pelo caráter de crônica e degenera para uma radiografia do interior dos personagens. Ou seja, em certas sequências os bonecos são discretamente negligenciados para dar vez aos atores contracenarem. Há cenas comoventes, como o momento em que um pai consulta Dom Manuel sobre o enterro do filho suicida, que tinha sido proibido na cidade de onde viera. O padre explica que todos têm direito a um sepultamento digno e, para conforto do pai, afirma que o filho teria se arrependido de seus pecados minutos antes da sua partida. Em outra passagem, poeticamente deslumbrante, um lencinho é queimado, simulando a subida de um balão, e as cinzas desabam sobre a cidade. Não menos emocionante, em trânsito do cômico para o dramático, uma apresentação de mamulengo diverte a comunidade. Instantes depois, o mamulengueiro carrega sua mulher morta em direção à igreja. Trata-se de metáfora pungente sobre a natureza sagrada do ofício do artista que, mesmo diante de uma tragédia pessoal, não interrompe sua arte.   

A montagem é de fácil arrebatamento, desfrutável pela espessura poética, a inspirada narrativa não-convencional e a harmonia entre bonecos e atores. Elementos que, articulados inteligentemente, produzem uma encenação leve e desprendida para um assunto embaraçoso, o de alguém que, no exercício da fé, se vê profundamente abalado pela dúvida, na escorregadia fronteira entre a santidade e a heresia. Dom Manuel é um agente que, no sentido inverso do presumido discurso religioso, entende que a religião serve de ferramenta para enfrentar o medo da morte, o desgosto inevitável das perdas e a sensação de vazio. Sem adição de firulas e com bonecos inseminados de energia e sentimentos humanos, mesmo esculpidos em madeira compacta, o espetáculo do Sobrevento seduz pela linguagem inusual com que aborda o texto agudo e a habilidade em decupar de seu rico conteúdo uma estimulante reflexão sobre os dolorosos choques entre a razão e a fé. Um trabalho coeso e emocional, sem altos e baixos.    

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Marco Aurélio Olimpio)

 

Avaliação: Ótimo

 

São Manuel Bueno, Mártir

Texto: Miguel de Unamuno 

Direção e Dramaturgia: Luiz André Cherubini e Sandra Vargas

Elenco: Sandra Vargas, Luiz André Cherubini e Maurício Santana

Estreou: 17/01/2013

Espaço Sobrevento (Rua Coronel Albino Bairão, 42, Belenzinho. Fone: 3399-3589). Sábado e domingo, 20h. Entrada gratuita. Até 11 de setembro.

 

 

 

 

 

 

 

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