EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: A Língua em Pedaços

A controversa vida da freira carmelita, poetisa e santa católica Teresa d`Ávila (1515-1582) ganhou estimulante versão teatral do dramaturgo espanhol Juan Mayorga, que se baseou na autobiografia O Livro da Vida para escrever a obra quatro anos atrás. Neste segundo clássico literário mais lido na Espanha, a religiosa lembra sua infância, seus dilemas, crenças e experiências místicas. Chega pela primeira vez aos palcos brasileiros, em insinuante montagem dirigida por Elias Andreato. Trata-se de um envolvente choque de ideias e conceitos entre a autodenominada Teresa de Jesus e um Inquisidor, que a acusou de rebelião e heterodoxia por ter fundado o ramo das Carmelitas Descalças. A fictícia contenda não existiu, mas o imaginário encontro funciona para ativar diálogos que discutem questões teológicas, filosóficas e políticas e reverberam questões como o exercício subversivo da fé, a pregação do princípio da pobreza absoluta e a ousadia de professar as próprias convicções. Temas substanciais que o autor examina, especialmente porque a trama desenrola-se no século XVI, quando a voz feminina era abafada sob as regras e estatutos ditados pelos homens.

Povoada apenas por uma mesa e duas cadeiras, a cozinha do convento São José, claustro para onde ela havia se transferido, ambienta a arena onde se trava a batalha dialética entre a religiosa desobediente e persuasiva e o guardião moral da Igreja Católica, cuja intenção é evitar uma crise nas hostes católicas provocada pelos atos da mulher. Eles estão armados apenas com as falas e uma faca de cortar batatas. O clérigo tenta convencê-la a voltar para o seu carmelo e abandonar a tentativa, que julga insolente, de reformar a ordem à qual pertence. Avalia que ela foi infiel ao cristianismo, critica-a pela ambição de querer ter sua própria congregação e a acusa de luxúria, ao relembrar de sua trajetória antes de colocar em prática sua vocação religiosa. Teresa, no entanto, é uma personalidade de rara consistência intelectual, que defende com sinceridade seu lugar na sociedade e na religião e não abre mão de fazer valer seu credo, suas visões, contatos com Deus e êxtases, que se revelavam no corpo – a alusão a uma “pulsão sexual” em tais manifestações é clara. Em passagem emblemática, o eclesiástico raciocina que a indisciplina da freira estaria fomentando uma guerra entre calçados e descalços dentro da Igreja e do mundo.

Não é um enredo que se reduz apenas à tensão dramática. O que emerge é um inteligente e feroz duelo de paradoxos, não sem armadilhas, injúrias e ameaças, que opõe um indivíduo cético e racional, disposto a restaurar a ordem vigente, a uma figura de fé inabalável, que radicaliza sua espiritualidade a ponto de comprometer toda a instituição. Até uma mútua e velada atração física ameaça tomar forma em meio ao conflito. Há uma sequência em que, aturdido, ele discorre que “se a língua dissesse a verdade sobre o céu e o inferno, partiria-se em pedaços”. Mesmo nos momentos de maior perplexidade e voragem, Mayorga não carrega nas tintas do drama ou arranha a neutralidade. Seu olhar privilegia o caráter agudo e implacável dos argumentos, despindo-se de julgamentos fáceis.  

A sóbria montagem concebida por Elias Andreato não comporta rodeios ou soluções maneiristas. Como a palavra está a serviço da ação, o diretor instaura uma dinâmica que favorece o confronto dos dois pontos de vistas adversos. O jogo teatral transcorre em um único ato, pontuado pelo som poético da linguagem de época, a inserção de músicas que dialogam com o contexto e o encanto da retórica.

Os dois atores entregam-se sem pruridos à luta ideológica de seus personagens, num equilíbrio de interpretação que atomiza uma encenação intencionalmente rarefeita. Ana Cecília Costa passeia por uma variedade de registros, oscilando entre o místico e carnal, o intelectual e a emoção. Concede verossimilhança a uma criatura de espírito transgressor que enfrenta com serenidade a repressão da Inquisição. Sua Teresa é ao mesmo tempo contemplativa e cheia de determinação. Marco Antônio Pâmio dá musculatura ao papel do frio e calculista Inquisidor, um homem forte que eventualmente beira a agressividade verbal sem jamais resvalar no estereótipo do mal. É um prelado de atitudes educadas, que se esforça para disfarçar o orgulho e a arrogância.  

A peça disponibiliza outros ângulos de análise. Da mesma forma que oferece observações importantes sobre a herança teológica de santa Teresa d´Ávila, ela também estala um estudo afiado sobre a afirmação feminina diante de um poder masculino que não tolera a desobediência da mulher e impõe suas próprias doutrinas. Ou uma reflexão incômoda sobre a dissidência espiritual em uma sociedade tiranizada pela ortodoxia católica. O texto descortina ainda uma leitura política, por meio dessa estóica disputa entre um ser que representa a instância repressiva institucionalizada e outro que se subleva contra o arbítrio. A fé pode ser questionável, na perspectiva de Mayorga. No entanto, vontade e caráter nunca.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Laercio Luz)

 

Avaliação: Bom

 

A Língua em Pedaços

Texto: Juan Mayorga

Direção: Elias Andreato

Elenco: Ana Cecília Costa e Marco Antônio Pâmio

Estreou: 09/5/2015

Teatro Eva Herz (Avenida Paulista, 2073, Conjunto Nacional, Jardins. Fone: 3170-4059). Sábado, 18h. Ingresso: R$ 50. Até 12 de dezembro. 

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