EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Herói da resistência

O futebol francês pode ter perdido um jogador de futebol que, na definição do próprio personagem desta matéria, Jean Thomas Bernardini, mesclaria o comportamento intempestivo de Romário com o estilo clássico de Toninho Cerezzo, meio campista da Seleção Brasileira de 1982. Em compensação, o cinema brasileiro ganhou uma distribuidora importante, a Imovision, e o complexo de salas Reserva Cultural, na Avenida Paulista, habitualmente eleito pela crítica especializada como o de melhor programação cinematográfica da cidade de São Paulo. O que uma coisa se liga na outra? Simples: quem pilota ambos os empreendimentos é o “ex-boleiro” Bernardini, este francês que desembarcou no Brasil trinta anos atrás e nunca mais saiu.

Com a desativação em março passado do cultuado Belas Artes, o Reserva Cultural passou a ser um dos raros templos na cidade a exibir aquilo que se convencionou chamar de filme de arte - produções de conteúdo reflexivo, normalmente de baixo orçamento e quase sempre de público restrito. Um arco que vai do cinema iraniano a Woody Allen. “Os fechamentos dos cines Belas Artes, Gemini (2010) e Top Cine (2006) são notícias que entristecem qualquer um que valoriza a sétima arte”, lamenta ele, que inaugurou as suas quatro salas de exibição em 2005. Desde então, o público cinéfilo que marca presença ali cresce em média 12% ao ano.  

Bernardini, no fundo, não estranha a descontinuidade de espaços dedicados ao cinema alternativo. A cultura, observa, deixou de ser prioridade no mundo de hoje e o jovem tem preferido barzinhos e baladas. “Na distribuidora, eu adquiria filmes ousados e avançados que, ao serem lançados, permaneciam semanas em cartaz. Agora, não há demanda de público para longas temporadas”, compara. “Quem tem mais fôlego para resistir são as grandes produções. Até na França, de cultura cinematográfica mais consolidada, houve um rebaixamento cultural.”

Um dos segredos da situação estável do Reserva Cultural, que caminha na contramão do cinema hollywoodiano, é o combo qualidade da programação + cuidado com o público – há estacionamento, praça de alimentação (com vista para a Avenida Paulista, pela fachada envidraçada), boulangerie e livraria, ou seja, a mesma estrutura oferecida num shopping center para quem vai ao cinema.

No Reserva, nenhum filme entra em cartaz por política ou amizade. Até longas-metragens com o selo da Imovision, se não renderem o suficiente, são sumariamente removidos da grade antes do prazo imaginado. O critério é eminentemente profissional. Bem sucedido de público, Vincere, do diretor italiano Marco Bellocchio, foi um exemplo de produção que se estendeu além do prazo imaginado. Em contrapartida, 3 Homens e Uma Noite Fria,do cineasta finlandês Mika Kaurismaki, não agradou e foi rapidamente limado da grade.  

“O segredo é ser coerente com a proposta e o perfil da sala. Nossa lógica não é a comercial, como a do Cinemark, mais de olho na bilheteria do que nas virtudes artísticas do filme. Para nós, vale a fita que ganhou um festival relevante, contém uma linguagem inovadora, tem um diretor autoral”, explica Bernardini, habitualmente convidado para festivais de cinema pelo mundo, quando exercita seu faro aguçado para adquirir obras “diferentes”.     

A regra do jogo. Mesmo com a proposta afinada, Bernardini levou um susto no dia da inauguração do Reserva Cultural. Ele queria carimbar a programação de estréia como uma vitrine do cinema de arte realizado no mundo. O único diretor a aparecer, de uma ampla lista de convidados, foi o cineasta argentino Santiago Carlos Oves, do longa Conversando com a Mamãe (2004). Os demais refugaram de última hora. “O engraçado é que a fita emplacou oito meses em cartaz”, diverte-se Bernardini, que já recepcionou, entre outros, o diretor norte-americano Francis Ford Coppola e a atriz francesa Catherine Deneuve (foto ao lado).

“Hoje, o público que chega aqui pode até não conhecer os filmes em exibição, mas sabe que, se está na grade, é porque vale a pena”, orgulha-se ele, habituado a assistir em sua casa uma média de sete a dez longas por semana, no formato DVD. “Não tenho preferências de gêneros, não existe um diretor que eu acompanhe especificamente. O Luchino Visconti (O Leopardo / Rocco e Seus Irmãos) é um diretor clássico, fez grandes obras e porcarias também. Gosto de tudo, menos de terror e animação”, revela.

Diferentemente do menino do lacrimoso Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, que se fascinava pelas imagens projetadas na tela, Bernardini passou a sua infância e adolescência curtindo outras aventuras. No lugar das salas escuras de cinema, ele investia o seu tempo jogando bola. Chegou a atuar no time do Olympique de Marseille (símbolo ao lado), mas uma grave contusão o retirou dos gramados aos 21 anos.

Ele lembra que o rompimento dos ligamentos do joelho foi tão grave que os médicos cogitaram amputar a sua perna. Seu caso, inclusive, repercutiu no mundo europeu da bola, na ocasião. Foi salvo pela perseverança. A cirurgia durou onze horas, no primeiro dia, e mais nove na sequência. “Os médicos retiravam a gangrena com colher”, recorda-se. Durante um ano, cumpriu exaustivas oito horas diárias de fisioterapia.

O acidente só antecipou uma decisão que Bernardini, “indisciplinado e temperamental como Romário”, já havia tomado anteriormente - a de não seguir carreira nos campos de futebol. Já “aposentado da bola”, cursou Psicologia por coação do pai comerciante, contrário à idéia de que o filho não tivesse diploma universitário. Nas horas vagas, para faturar uns trocados, vendia band-aids. O negócio caminhou tão bem que ele formou uma equipe de setenta vendedores dispostos a bater de casa em casa ofertando o pequeno curativo. Na época, morava em Aix em Provence, cidade distante setecentos quilômetros de Paris.

O destino bate à sua porta. Sua vida mudou de vez quando, em 1978, um amigo lhe confidenciou que havia um hotel à beira mar à venda no Rio de Janeiro, a “preço de banana”. Bernardini fez as malas, despediu-se da família e dos amigos e embarcou no primeiro vôo para o Brasil. Na chegada, a surpresa desagradável: o amigo se equivocara absurdamente no valor do hotel, que custava vários dígitos a mais. “Como eu tinha avisado todo mundo, não podia voltar de mãos abanando”, confessa Bernardini, que decidiu permanecer mais um tempo na cidade.

Aí, vivenciou outro apuro. Sem conseguir reservar um cofre em bancos brasileiros por não ter CPF, e com medo de deixar toda a grana no apartamento alugado, disfarçava o volume de dinheiro numa bolsa que carregava para tudo quanto é lugar. Um dia, no entanto, esqueceu-a numa lanchonete e bateu o desespero. Voltou correndo quinze minutos depois e, felizmente, o balconista a havia guardado, “sem mexer em nada”.

Já habituado ao cotidiano carioca, investiu o que tinha em uma confecção. Ele ouvira falar que os brasileiros compravam jeans de baciada em Saint-Tropez, abriu uma fábrica e virou representante no País da marca McKeen. Chegou a negociar 120 mil peças em uma feira de moda. Um sucesso. “Em 1982, organizei o primeiro desfile internacional de moda no Brasil”, conta ele. O negócio durou pouco, até 1990, abalroado pelo confisco dos ativos financeiros promovido pelo então presidente Fernando Collor.

A sua sorte é que, simultaneamente à fábrica, ele havia estruturado a Distribuidora Imovision – sua experiência em cinema, até ali, tinha sido cuidar do cineclube na universidade, em Marselha. A inspiração para o empreendimento surgiu porque um amigo francês pediu-lhe para distribuir no Brasil o longa-metragem Inverno 54. Lançou-o em 1991 e a produção percorreu com sucesso o circuito alternativo da época.

A notícia do êxito do lançamento correu e Bernardini passou a atender telefonemas vindos da Europa, de gente interessada em exibir suas fitas por aqui. Na ocasião, distribuía em média três produções por ano, que permaneciam até meses em cartaz, mesmo com a existência de poucas salas de exibição. “Hoje, o filme virou produto. Até lanço uma quantidade maior de obras, mas logo saem da programação”, compara ele, que sentiu a necessidade de também virar exibidor em 2005 pelo simples fato de que era impossível ficar o tempo suficiente em cartaz apenas com produções independentes.

“Eu sabia que o Reserva Cultural ia funcionar porque, como distribuidor, eu conhecia o mercado”, assinala ele, enfatizando que não fez nada de revolucionário, apenas se guiou pela coerência. Para corroborar o raciocínio, cita o ex-presidente Lula que afirmou, certa vez, que fazer o óbvio é mais difícil do que se imagina. “Fiz uma pesquisa sobre pipoca e constatei que 72% não gostavam de comê-la durante a projeção do filme. Por que ia brigar com os números? Somos o único cinema no Brasil que não tem pipoca. Não sou maluco de contrariar a clientela.”

Dias de glória. Além da Imovision e do Reserva Cultural, Bernardini mantém desde 1995 a boulangerie Pain de France (foto ao lado), localizada no próprio espaço e em unidades nos Jardins e Pinheiros. Nos dois primeiros anos, dividia a sociedade com o sócio o padeiro Olivier Anquier. Depois, assumiu integralmente a empreitada. Outro negócio que até um ano atrás administrava era um barco-hotel em Santarém, no Pará, o Amazon Dream. Na impossibilidade de conciliar tantas atividades, decidiu vender a sua parte para o sócio. “Ele reclamava a minha presença a toda hora e eu não tinha como viajar sempre.” 

Casado há vinte anos com Denise Pompeu de Toledo, neta do Cícero, o dirigente esportivo que incentivou a construção do Estádio do Morumbi, o sãopaulino Bernardini é pai de um cientista político de 29 anos, fruto de seu casamento anterior com a ex-modelo Marilene Maggione. O rapaz trabalha na ONU e estava no terremoto que devastou o Haiti no início do ano passado.

Na época em Paris, Bernardini quase enfartou diante do noticiário. Só se tranqüilizou quando recebeu uma mensagem, via celular: “Pai, estou vivo”. Talvez tenha sido a frase mais importante que leu na vida. Dos nove funcionários que escaparam com vida do destruído prédio da ONU, o único que continua naquele país é o seu filho. “Acho que ele tem vocação para salvar o mundo”, brinca o pai.   

Definitivamente enturmado no Brasil, ele não se atrapalha mais como nos primeiros dias. Quando desembarcou no Rio de Janeiro, ansiava fixar residência no bairro do Flamengo por causa do time homônimo de futebol, o único que já ouvira falar em função da fama internacional de Zico. Ficou decepcionado, no entanto, ao saber que quem tinha estádio mais próximo dali era o “desconhecido” Fluminense. “Que país estranho!”, foi logo pensando. Com o tempo, aprendeu a gostar do jeito alegre do brasileiro, que compara com o estilo acolhedor e brincalhão dos franceses do Sul. “Na França, existe uma diferença entre a capital e o restante do país. O parisiense é um sujeito chato, pretensioso, invejoso e arrogante”, cutuca.

Mesmo com tantos anos de janela no Brasil, o sotaque francês ainda é marcante. A relativa dificuldade com o idioma local não o incomoda. Foi-se o tempo em que vivia se confundindo. No início, recorda-se, aprendeu o português que se fala na praia carioca, cheio de gírias e expressões peculiares. Certa vez, num jantar na residência carioca do cônsul brasileiro na França, a filha do anfitrião perguntou-lhe se conseguia se expressar em português. “Como eu só sabia gíria, fiquei envergonhado e quase desabei.”

Percebendo o sufoco do convidado, o cônsul arrumou-lhe um professor da área. “Desde que cheguei, não passo mais do que seis meses sem viajar para a França. Aí é difícil perder o sotaque mesmo”, justifica ele, que tem o hábito de comprar livros e não lê-los, “por absoluta falta de tempo”, e cultiva algumas manias, como a de não revelar a sua idade. “Escreva aí que eu já passei dos 40”, ri.  

Edgar Olimpio de Souza     

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