EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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A melhor entrevista do ano

O título desta matéria é uma provocação, mas há uma explicação para isso. Se há uma coisa que o cantor e compositor maranhense Zeca Baleiro, 46 anos, não curte são as famosas listas com os melhores nisso e naquilo. “Essas eleições da mídia viraram um fetiche, fico preocupado quando vejo meu nome nelas”, revela ele, que no ano passado lançou o seu mais recente álbum, o elogiado O Disco do Ano, com doze faixas (onze inéditas) e a assinatura de quinze produtores. Os tais rankings que trata com desdém só não o incomodam mais porque a grande mídia, avalia, deixou de influenciar o julgamento das pessoas. Hoje as pessoas estariam mais sensíveis à internet e às redes sociais, que assumiram o papel das comadres fofoqueiras. “Todo mundo tem um blog e pode escrever o que quiser”, justifica.    

Versátil, ele circula com desenvoltura tanto pelo rock quanto pelo samba, baião, reggae ou pagode. Por isso, não gosta de ser rotulado, por exemplo, de neotropicalista, como se deu no início da carreira. “Rótulo é uma camisa-de-força”, acredita ele, também avesso à crítica musical especializada, “meio leviana e sem informação suficiente”. Nesta entrevista, Baleiro fala da banalização das letras das canções, da pertinência de um adolescente ler Machado de Assis na atualidade e sugere um debate: “Dostoievski é mais importante do que um game?”. Após colocar o disco na praça e ter produzido o álbum de retorno do “ex-brega e agora cult” Odair José, ele traça planos. Um deles é montar no próximo ano o seu segundo texto teatral, em torno da obra de Nelson Rodrigues, autor que considera genial. “Ele é o nosso Shakespeare.”  

Por Edgar Olimpio de Souza

 

O seu mais recente álbum, O Disco do Ano, estampa um título provocativo. É claramente uma ironia às listas e relações que se vive fazendo aos montes por aí?

É um conceito, remete à mania atual dos rankings, das eleições da mídia. Eu uso a ironia como arma para cutucar esse fetiche. Qual o critério para se montar uma relação dos melhores nisso e naquilo? Se algum disco foi eleito o melhor do ano, deve ter sido mesmo. Mas não sejamos ingênuos, há conchavos. Fico preocupado quando vejo meu nome nessas listinhas. O título soa uma provocação. A última coisa que quero é não causar nada. Prefiro que odeiem a que gostem mais ou menos. Passei um bom tempo sem gravar material inédito e no ano passado lancei este álbum, com músicas novas. Meus discos, aliás, seguem cronologias malucas. O desafio foi criar surpresas, evitar fórmulas repetitivas, inserir nuances sonoras. Apesar de ter convidado muitos produtores, correndo o risco de virar um produto frankenstein, consegui uma unidade.

Você dá bola para a crítica?

Muitas vezes fui incompreendido, o que acho ótimo. Se fosse o contrário, seria frustrante. No início da carreira, a crítica te impacta. Se ela é positiva, você fica deslumbrado. Do contrário, te abala. Se ela é maledicente, significa que o crítico não vai com a sua cara. Ao produzir uma obra, você se expõe. A imprensa vai entendê-la? Um crítico resenhou num jornal carioca que a canção Meu Amigo Enok, que emula a banda Gang 90, da década de 1980, é a melhor do disco atual. Mas eu a compus de brincadeira. No Brasil, a crítica especializada é meio leviana e pouco fundamentada. Falta informação. Antes, ter um disco elogiado na Folha de S. Paulo, em O Globo e na Veja influenciava o julgamento das pessoas. Hoje, esse poder se diluiu por conta da internet e das redes sociais. Todo mundo tem um blog e pode escrever o que quiser.

O Caetano Veloso revelou em uma entrevista de que não gostava de um de seus maiores sucessos, Lenha...

Mamãe no Face, uma das músicas do Disco do Ano, brinca com o episódio. “Mamãe / Eu fiz o disco do ano / E até mesmo Caetano / Parece que aprovou...”. Na ocasião eu comentei que ele era uma comadre linguaruda porque falava demais. O Caetano adora emitir certificados de qualidade à produção alheia. Virou uma espécie de juiz da música brasileira. Mas o que eu disse foi uma brincadeira. Tenho carinho por ele. 

No início, você foi muito incensado apenas por ter sido uma novidade?

A mídia é muito novidadeira e não foi diferente comigo. Logo me rotularam de neotropicalista. O que significava isso? Queriam criar um fato e propagá-lo. Até achava elegante e não era de todo mentiroso. No entanto, não existe nada puro. Sou filho tanto da MPB quanto do rock. Agora me livrei desse rótulo. Outra coisa: eu nasci na era da indústria cultural. Para a minha geração, produto e arte estão mesclados. O que faço não é só arte, mas entretenimento também. Não é algo superior aos mortais. É um tanto descartável, com prazo de validade. Nos tempos urgentes de hoje, um disco lançado dois anos atrás já está datado. O mesmo pode suceder com um artista. Para sobreviver, é preciso entender isso.

Colar etiqueta num artista pode destruir sua carreira?

Claro, porque os rótulos são reducionistas, funcionam como camisa-de-força. A indústria e a imprensa precisam dele, mas o artista não. A partir do momento em que você se deixa rotular, vira escravo. E o maior bem de um criador é a sua independência, sua liberdade. Nos anos 1970, o Walter Franco e o Jards Macalé foram classificados de artistas malditos. Naquela época de contracultura, digamos, até era legal. Hoje, no entanto, virou uma maldição para eles. Um artista pode desarmar a armadilha abrindo-se para a diversidade musical. Apesar da origem e geração diferentes, eu curto o som do Chorão, do grupo Charlie Brown Jr. É um cantor e compositor pop que passeia fácil pelo universo do hip hop. A banda ficou grata por eu ter gravado Proibida Pra Mim. O Chorão me contou que ninguém da MPB havia dado moral para ele até então.  

No caso do veterano Odair José, cujo último disco você produziu, o rótulo de brega o havia alijado do cenário musical?

Eu o considero um gênio popular, um cara que não sente medo de cantar o que vive,  sem rodeios e firulas. Um artista singular. Enquanto a Jovem Guarda falava de calhambeques, Odair José transitava pelo submundo. É um lorde interiorano, educadíssimo, pede a vez para falar. Um cara de outro tempo. Mas grudaram nele o rótulo de brega. A gente se conheceu durante a minha participação no álbum Eu Vou Tirar Você Desse Lugar, tributo feito à sua obra. Fiquei quatro anos tentando convencê-lo a gravar um disco com músicas novas. Ele alegava que não adiantava nada pensar em canções inéditas se o público vivia pedindo sempre os mesmos sucessos. Finalmente ele topou e lançamos Praça Tiradentes (foto ao lado) no ano passado, gravado nos meus estúdios com minha banda. Ele começa a ter o seu lugar merecido na MPB. Agora virou cult. 

Em 2004, Chico Buarque afirmou que a canção havia acabado, o que gerou uma grande polêmica. Ele estava certo?

A canção é uma expressão humana, como a fala e a dança, só vai acabar quando a vida humana se extinguir. Essa frase do Chico foi mal interpretada e se criou uma falsa polêmica em torno dela. Ele quis se referir ao fim de uma era da canção e não ao fim da canção propriamente dita. Eu posso até entender que ela não tenha mais a mesma importância na atualidade. Na minha adolescência, a gente citava versos musicais no boteco. Isso acabou. Houve um empobrecimento cultural que afetou tudo. Pela sua efemeridade, daqui a seis meses uma música será esquecida. Bem diferente daqueles tempos em que um disco censurado do Chico Buarque era ansiosamente aguardado. 

Vivemos a época da banalização das letras das canções?

O que me incomoda é a superexposição, a maneira com que a cultura massificada e descartável é imposta ao grande público e aceita por ele. O pior é que esse massacre midiático acontece no mundo todo, basta ter artistas e estilos comercialmente viáveis. Quando se instaura um gênero de sucesso, vira uma monocultura. À margem da grande mídia, no entanto, existem artistas no Brasil procurando fazer um trabalho original e com conteúdo. Na função de pai, no entanto, fico querendo que meus filhos ouçam de tudo, inclusive o que se julga lixo cultural. Para criar um filtro, desenvolver o discernimento. Se você ouvir só coisas elitistas, você vai se tornar um elitista da cultura.

A pirataria musical é um problema grave? 

Em si, não. E não vejo como coibi-la porque a ferramenta para essa prática ilícita vai continuar existindo. Brasileiro gosta de música e tem o hábito de comprá-la, ainda mais se for muito fácil e barato adquiri-la. É como guiar alcoolizado: a gente sabe que é ruim e ilegal, mas dirige. Conheci gente que comprou CD pirata, gostou e depois adquiriu o original. Por falar nisso, muita gente acha que os CDs morrerão. Claro que as coisas mudam, evoluem, porém eles não irão acabar. Talvez a produção diminua. Nos anos 1970, meu pai chegava em casa com um disco e aquilo virava um evento. Hoje, meus filhos não têm tempo nem disposição espiritual para isso. 

Em algum momento da vida, pensou em chutar tudo para cima?

Hoje eu acordei assim. Todo mundo tem esse dia de ficar de saco cheio de plantar orgânico no sul de Minas, de dar autógrafo num CD. Algumas coisas, inclusive, viram maldição porque você tenta largá-las e não consegue. Pegar estrada, por exemplo. Sou muito chamado para aniversários no interior. Volta e meia durmo em motel, sozinho, é bom frisar, e só tem caju para comer. Esse prazer rock and roll de botar o pé na estrada e beber cerveja no fim do dia é ilusório. Procuro estabelecer metas, desafios, me reinventar. Quero abrir uma escolinha de futebol. Acompanhei a Copa América na Argentina em 2011. Foi uma loucura ver aquela porcaria de seleção brasileira jogar. Adoro o universo do futebol. Numa final Santos x Corinthians, cheguei a fazer coro contra o Ronaldo Fenômeno: ´Ei, você aí, deixou a Cicarelli pra pegar um travesti´.

A cultura das redes sociais já entrou no seu dia a dia?

Pela natureza do meu trabalho, sou dependente da internet. Eu tenho perfis ativos no Facebook e no Twitter. Uso tais ferramentas para divulgar meus projetos e tem dado bons resultados. Eu resisti durante algum tempo a ingressar no mundo das redes sociais porque minha vida já é uma rede social intensa. Sou uma figura pública que expõe imagem e pensamento. Não podemos brigar contra a cultura de nosso tempo. Essa tecnologia acabou promovendo uma mudança sensível nas relações interpessoais. Para os adolescentes, e tem gente que a aciona a cada dez minutos, todo dia tem fofoca. As redes sociais assumiram hoje o papel das comadres que ficavam nas janelas fazendo intrigas e jogando conversa fora. Os papos no bar ficaram chatos. Uma dúvida não gera mais discussões intermináveis. Basta pesquisar no Google. 

Na sua opinião, os artistas hoje estão mais preocupados em mostrar suas casas do que falar de seus trabalhos?

Artistas de verdade falam de trabalho. Os de fachada são reféns da cultura da celebridade. A futilidade desfruta de bastante espaço na atualidade. Muitas vezes você vai ser entrevistado por um repórter de um grande jornal e ele faz perguntas típicas de uma revista Caras ou Contigo. Fica a impressão de que todo mundo gosta de banalidades. Num consultório de dentista, não leio Dostoievski. Fico me perguntando se nos tempos de hoje este autor tem mais importância do que um game e seus estímulos mais imediatos e tangíveis. É uma tese para se pensar. Faz sentido meu filho adolescente ler Machado de Assis hoje? Sou um velho de 46 anos e me aflige observar que o mundo está se transformando. Tal percepção gera um sentimento terrível de perda.  

A política é um assunto do seu dia a dia?

Tanto a política quanto os políticos estão desacreditados. É tão passional quanto o futebol. Ando meio desacreditado. Com a maturidade a gente observa que as transformações sociais não partem dos políticos, mas das organizações civis. Quando somos jovens, a gente tem a ilusão de que basta ter vontade política para mudar a realidade. Não é bem assim. Políticos como o Eduardo Suplicy e o Fernando Gabeira, por exemplo, são anulados porque também estão à mercê dos financiamentos e lobbies diversos. A Dilma não faz nada sozinha sem passar por um Sarney. Eu acredito no desejo político dos cidadãos, daqueles preocupados em tornar o planeta mais habitável e menos inóspito. A política perdeu relevância no mundo moderno.

Você escreveu uma peça teatral, A Paixão Segundo Nelson, com previsão de ser montada no próximo ano. O teatro é uma nova trincheira de atuação?

Eu já havia escrito um musical infantil encenado em 2010, Quem Tem Medo de Curupira?, que permaneceu seis meses em cartaz. Fiquei entusiasmado com a brincadeira. Comecei no teatro, no Maranhão, compondo trilhas para espetáculos infantis na década de 1980. A peça atual tem como ponto de partida alguns livros do dramaturgo Nelson Rodrigues (foto ao lado), como A Vida Como Ela É e A Sombra das Chuteiras Imortais. É uma colagem de textos, com atmosfera musical. Fiz questão de preservar toda a essência rodrigueana. A ação acontece em uma emissora de rádio fictícia dos anos 1950, A Voz do Rio, com seus programas esportivos, atrações femininas, radionovelas e musicais.       

O que o atrai em Nelson Rodrigues?

Os textos ácidos, as opiniões ousadas, os aforismos provocadores, a filosofia de padaria, o vocabulário único, sempre genial. Ele é nosso William Shakespeare.

 

(Foto de abertura: Gal Oppido)

 

Veja clipe da música Calma Aí, Coração

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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