EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Escute As Feras

Um encontro quase mortal entre uma mulher e um urso nas montanhas da Sibéria, na Rússia, e as questões políticas, sociais e psicológicas daí decorrentes mobilizam esta magnética adaptação teatral do livro homônimo da antropóloga francesa Nastassja Martin. Na obra, a autora engendra uma reflexão sobre o desmoronamento de seu mundo interior a partir desse incidente e de como o evento traumático a mergulhou em um processo de reconstrução pessoal. Com direção de Mika Lins e solo da atriz Maria Manoella, a montagem entrelaça memórias, drama, identidade e cultura, temas que funcionam para espessar uma discussão sobre a relação entre o humano e a natureza.    

Em 2015, a antropóloga desenvolvia um estudo com os povos nativos evens na península de Kamchatka. Em uma incursão pela geografia local, foi atacada por um urso, que lhe arrancou parte da mandíbula e dois dentes. Só conseguiu se livrar do enorme bicho ao feri-lo na pata com um machado de gelo que carregava consigo. Após ser resgatada por um helicóptero, foi levada para um hospital da província, onde acabou sendo submetida a variadas cirurgias de reparação facial.  

Sua descida ao inferno prosseguiu na França, para onde retornou e foi novamente internada. Passou dias amarrada na cama, suportando um tubo enfiado em seu nariz e garganta, e enfrentou novas intervenções cirúrgicas, algumas para corrigir procedimentos supostamente equivocados executados pela equipe médica russa. Os médicos franceses decidiram, por exemplo, substituir a placa de metal instalada em seu rosto por um protótipo ocidental. Seu queixo havia se transformado no cenário de uma Guerra Fria médica franco-russa.

O espetáculo permite uma abordagem psicanalítica e emana uma estranheza que prende a atenção do início ao fim. O público acompanha os acontecimentos relacionados à agressão do urso, as internações e as impressões colhidas do contato com os nativos das aldeias pesquisadas. Uma das passagens que mais lhe perturbou foi o massacre das renas a céu aberto para a venda de suas cobiçadas carnes. Há resenhas curiosas, como uma inquirição feita pela polícia secreta russa, desconfiada de que ela poderia ser uma espiã infiltrada no país. “O que fazia uma jovem francesa nos arredores da base militar e como é possível que tenha conseguido sobreviver ao ataque de um urso?”, ouve, perplexa.

Durante o período de reclusão no leito hospitalar, chegou a assistir um filme protagonizado por uma mulher atrás de seu amor, transfigurado em animal por conta de uma maldição. Espanta-se ao enxergar alguns nexos com a sua história. Lembra-se da visita da mãe, do irmão e de amigos, pessoas tão diferentes entre si que era difícil imaginá-las lado a lado. Uma psicóloga lhe perguntou como se sentia. “Porque, você sabe, o rosto é a identidade.”  

Partindo desse material pulsante, Mika Lins imprimiu uma mis-en-scène intimista. Deixa as falas em primeiro plano e transmuta o rígido molde literário em ação física. A engrenagem cênica vibra sem parecer fora do lugar ou excessiva. A encenação se potencializa ainda por uma hipnotizante trilha sonora executada ao vivo por Lúcio Maia, um tecido sonoro que ecoa vento, chuva, ruídos de floresta.

Em atuação centrada e contagiada de nuances, Maria Manoella adentra no corpo e alma desta figura que está aprendendo mais sobre si mesma do que dissecando a vida dos outros. Sob a luz precisa de Caetano Vilela, ela transpira a inquietação de alguém que vislumbra na peleja contra a fera um marco de ressignificação da sua identidade e de reelaboração existencial. Em certo momento, ela dá voz ao urso, num esforço em capturar e expressar a sua perspectiva. Escrito por Ana Paula Pacheco, o discurso adiciona camadas ao relato. Desdobra um jogo de projeções, cada um transferindo ao outro seus pensamentos e emoções.   

Em instante algum o espetáculo deseja fisgar de qualquer maneira a autopiedade da plateia. O propósito aqui é compartilhar a ansiedade da personagem em entender o que lhe sucedeu. Em seu regresso ao lugar de seu trabalho, é investida de novo status. Aos olhos da nação even, ela havia se tornado uma miêdka, um híbrido de humano e animal, uma condição que provoca tanto repulsa quanto fascínio na comunidade indígena. 

Nastassja não procura o vitimismo, uma moral da história, um flagrante de redenção e superação. Seu martírio prescinde de um símbolo, de um clichê. Tampouco se regozija com a agressividade do urso nem tenta aliciar o espectador para o caráter insólito do caso. Não existe uma cadeia de ressentimentos que precisa ser expiada ou destroçada. Se representa um peso difícil de estimar, o trauma serviu para ela impulsionar uma profunda meditação sobre as imprevisibilidades e incongruências da aventura humana.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Ariela Bueno)

 

Avaliação: Ótimo

 

Escute As Feras

Texto: Nastassja Martin

Adaptação: Fernanda Diamant, Mika Lins e Maria Manoella

Direção: Mika Lins

Elenco: Maria Manoella

Estreou: 11/11/2023

Sesc Ipiranga (Rua Bom Pastor, 822, Ipiranga). Ingresso: R$ 15 a R$ 50. Sexta e sábado, 20h; domingo, 18h30. Em cartaz até 3 de dezembro.

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