EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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O anti-herói da América

Faz cinco anos que o carioca Júlio Adrião percorre o Brasil e o Exterior com uma peça de Dario Fo que vira do avesso a epopéia do descobrimento das Américas. Em todas as praças o sucesso é arrebatador. Numa das apresentações chegou a ser chamado de punk por um entusiasmado adolescente. O curioso é que em A Descoberta das Américas não existe cenário, tampouco música ou vinhetas sonoras, desenho de luz ou troca de figurino. Nada do que se convencionou em uma montagem teatral.

Ele está literalmente sozinho em cena, mas nem parece. Isso porque o ator faz misérias usando seu corpo, voz, expressão e muita, mas muita, imaginação. Com naturalidade impressionante, interpreta índios e espanhóis, animais, Jesus e Madalena – o espectador tem a impressão de que está vendo tudo o que é sugerido. É uma performance tão arrebatadora que coleciona prêmios, aplausos efusivos do público e críticas favoráveis desde 2005, quando o espetáculo iniciou carreira e parece que, tão cedo, não irá se aposentar.

Nem deveria. O texto do dramaturgo italiano Dario Fo, escrito em 1992 para comemorar meio milênio do descobrimento do Novo Mundo, é uma versão transgressiva e transgressora das viagens de Cristóvão Colombo, que expõe as entranhas da formação da nossa identidade. Não há como não se seduzir pelas histórias mirabolantes que o ator vai desembrulhando no palco, como se fosse um contador de causos e histórias, na pele do malandro Johan Padan que embarca por engano em uma das caravelas do navegador e explorador europeu. Nas Américas, o anti-herói é escravizado por índios canibais, safa-se da morte certa fazendo milagres, vira líder venerado, forma um exército indígena e acaba caçando os espanhóis invasores.   

“O desafio atual é manter o grau de qualidade dentro de uma partitura que eu controlo desde as primeiras encenações, o que não quer dizer repetir, mas refiná-la”, diz o carioca Adrião, 49 anos, que já carimbou mais de quinhentas apresentações. “É como uma orquestra que toca uma sinfonia hoje para um público e amanhã já tem um outro à sua espera”, acrescenta. “E tenho que exercitar tudo tão bem como da primeira vez, sem perder o viço e a vitalidade. Não há espaço para algo mais ou menos.”

Ao longo desses anos a bordo do espetáculo,ele viveu experiências inusitadas. Em 2007, por exemplo, exibiu-se na Feira de Literatura de Passo Fundo sob uma lona com capacidade para mais de cinco mil  pessoas. Em se tratando de montagem intimista, o estilo show de rock foi um choque. Em contrapartida, também se apresentou para um único espectador pagante, no início da carreira do espetáculo. “Para dar idéia de casa cheia, espalhamos gente da produção pela platéia”, diverte-se.

A peça já foi encenada em todos os cantos do País e até desembarcou em Portugal, para onde retorna no final de maio para um tradicional festival na cidade do Porto. Na volta, percorrerá seis cidades brasileiras. Não está descartada ainda uma pequena turnê por Macau, Cabo Verde, Angola e Moçambique, países de língua portuguesa. Adrião chegou a montar uma versão na Itália, num festival local, com boa repercussão. “Já vi em DVD uma montagem com duas horas e meia estrelada pelo próprio Dario Fo, um mestre da palavra e do movimento, e olha que na época ele tinha 70 anos”, elogia. Hoje o dramaturgo tem 83.

Experiência internacional. Se o perfil do público varia, os elogios não. Certa vez, nos camarins, um espectador sapecou: “A montagem é tão louca que até esqueci que você estava dentro”. Em Niterói, um roqueiro levou a turma toda, que nunca tinha ido ao teatro. Ao final, um deles lascou: “Aí, tu é punk mesmo”. A intempestiva crítica de teatro carioca Bárbara Heliodora cravou: “O espetáculo preserva a ilusão da improvisação, parece que está sendo feito pela primeira vez, fala de um assunto como se tivesse acabado de lembrar.”

Adrião tem formação eclética. Cursou a prestigiada Casa de Artes de Laranjeira, trabalhou seis anos na Itália com o Teatro Potlach e outras companhias, integrou o trio cômico carioca Companhia do Público, dirigiu circo-teatro e ópera. A temporada européia foi fundamental para desenvolver habilidades em commedia dell´arte e teatro de rua. Foi uma experiência mais prática que acadêmica, de intenso treinamento físico, que serviu de âncora para montar A Descoberta das Américas. “A forma de contar a história surgiu a partir de exercícios de improvisação e a partir daí fui criando a partitura”, conta.

Há uma expectativa em torno do que o ator fará depois desse espetáculo, o que ele particularmente acha positivo porque não o estão aprisionando ao personagem. A ansiedade é em torno do teatro porque no cinema ele figura no elenco de dois filmes. Em Tropa de Elite 2, de José Padilha, fará nada menos que o governador do Rio de Janeiro. Em A Quente, de Juliana Reis, um plantonista no setor de emergência de um hospital. “Em algum momento vou largar A Descoberta das Américas e cair em outros projetos, mas a peça ainda está com a agenda lotada neste ano”, avisa. Um de seus sonhos é montar texto do poeta, contista e romancista Fausto Wolff (1940-2008), de escrita ácida, mas não teatral, um desafio para transpô-lo para a linguagem dos palcos.

Ator operário. Não são poucos os que estranham a ausência do ator em alguma novela ou minissérie na televisão, já que o discurso padrão na classe artística é a de que é impossível viver só de teatro. Não é o caso de Adrião, que garante sobreviver só do ofício. “O fato de ter o reconhecimento do público é um bom argumento na hora de acertar um cachê”, assinala. Na minissérie Amazônia, exibida pela Globo em 2007, ele chegou a fazer testes para interpretar um preceptor de Chico Mendes, um comunista foragido da Coluna Prestes. O Távora apareceu apenas em dois capítulos, mas era um sujeito importantíssimo porque foi responsável pela alfabetização de Chico Mendes.

“Não tenho nada contra a tevê, que é um excelente veículo para quando tenho tempo e saco”, brinca. “Também não critico quem faz novelas, talvez seja obrigatório mesmo para se ganhar dinheiro na profissão. Não acho que um ator tem de fazer de tudo. Tem gente que só prefere fazer cinema, outros querem apenas teatro, há quem privilegia televisão, qual o problema? Só não dá para ser ingênuo: atuar em telenovela significa também lidar com a mídia de celebridades, se transformar no alvo de qualquer coisa, para o bem e para o mal, perder a privacidade”, avalia ele. No ano passado, ele trabalhou em um docudrama na tevê inglesa sobre cidadãos americanos que se tornaram prisioneiros por tráfico de drogas. Foi escolhido por falar perfeitamente inglês.

Foi na virada dos 40 anos, quando montou A Descoberta das Américas, que Adrião conseguiu relativa autonomia profissional. Mas para chegar até aí, nada caiu do céu. O ator já fez muito o circuito do chamado teatro corporativo, exibindo-se em empresas e indústrias. “Já me apresentei em linhas de montagem e automotiva, junto aos operários, botava duas cadeiras no chão e mandava ver, durante meia hora eu teatralizava situações de segurança no trabalho”, lembra. “Foi enriquecedor porque se eles nunca tinham visto teatro, eu também nunca havia estado numa linha de montagem”, ressalta. “O fato é que esse tipo de trabalho me deu de comer e à minha família durante muito tempo. Como costumo dizer, tudo vale a pena, desde que você esteja a fim.”

(Fotos de Maria Elisa Franco)

 

Assista cena do espetáculo A Descoberta das Américas

 

 

 


 

 

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